como sobreviver submerso.

Quinta-feira, 17 de Março de 2011
Sobrecarga

A conjugação de eventos é difícil de assimilar. O sismo, o tsunami e a ameaça nuclear no Japão; a iminência da bancarrota em Portugal; a guerra na Líbia. É demasiado ao mesmo tempo. Não estamos preparados para tamanho multitasking emocional. O aturdimento confunde-se com o horror, com o medo e com a raiva, e cria uma mistura difícil de definir. Uma recusa que é também uma aceitação, talvez até uma predisposição. Uma atracção mórbida. Como não se possui capacidade para tudo ao mesmo tempo, selecciona-se. Esquece-se a guerra na Líbia. Esquece-se o facto de o exército de Kadhafi estar a massacrar opositores quase desarmados. Esquece-se o facto de ninguém os ajudar com outra coisa que não palavras. E palavras, como sabemos, leva-as o vento. O vento do deserto, onde nem sequer ecoam. Dentro de poucos meses ter-se-ão desvanecido e voltaremos a ver Kadhafi montar a sua tenda em Oeiras. Voltaremos a sorrir-lhe e a cumprimentá-lo efusivamente. Voltaremos a considerar a Líbia um excelente lugar para investir. E, pelo menos durante uns tempos, desde que não se remexam as areias do deserto e se exponham os corpos – e ainda que isso se faça – tudo ficará bem. Será menos um problema. Meia dúzia de vozes irritantes continuarão a falar do assunto, chamarão a atenção para as insuficiências da ONU, para o absoluto paradoxo de pretender que países totalitários decidam a favor da democracia (e, sim, «democracia» talvez não fosse o resultado de uma mudança de governo na Líbia mas a Líbia não passa do último exemplo), para a hipocrisia de países que falam e votam consoante os seus – tantas vezes pueris – interesses (de que forma a obtenção de um lugar no Conselho de Segurança compensa termos apoiado gente que logo a seguir tivemos de condenar?), mas ninguém lhes prestará atenção porque é fundamental pensar em grande, não continuar preso ao passado (repitam comigo: milhares de líbios mortos por Kadhafi é uma coisa má mas uma intervenção militar da ONU liderada por americanos seria um crime contra a humanidade – ou, e por favor digam-me onde registar os direitos pelo slogan, antes tiranos que americanos), é fundamental fazer avançar o mundo de encontro às palavras grandiloquentes dos nossos líderes, que até podem ser pequeninas, como «Yes, We Can», mas têm o poder de substituir a realidade, de a tornar mais bonita, mais justa, mais aberta às maravilhas do futuro. Enquanto não as leva o vento.

 

Mais umas centenas de mortos e a questão Líbia ficará encerrada. Será um alívio.

 

O Japão. É extraordinária a forma como os japoneses reagem. A calma. A resignação. A entreajuda. É extraordinário como não há pilhagens. Houve-as em Nova Orleães. Houve-as no Chile. Houve-as em acontecimentos bem menos graves, como as cheias de 2007 no Reino Unido. Mas não no Japão. Já se avançaram muitas explicações. Basta-me uma, seja ou não a mais importante: dignidade. A noção de que os actos têm consequências sobre os outros e sobre quem os pratica. A ideia de que cada pessoa tem tantos deveres quanto direitos e que é vergonhoso violar os direitos alheios, especialmente em momentos de dificuldade. Pode não ser só isso. Pode nem ser isso. Afinal, os japoneses também fizeram coisas horríveis nas várias guerras que travaram. (São as regras do dia-a-dia aplicáveis em tempo de guerra? Quais os limites para as excepções?) Mas estou-me nas tintas. Tem de se acreditar em algo mais do que no carácter vital dos resultados de um clube de futebol. Dignidade, face, sentido do dever são termos que significam pouco no Ocidente. Ainda os referimos com frequência mas já nem lhes conhecemos o significado. São exigências que fazemos aos outros, não a nós próprios: para cada um de nós (sim, generalizo) só os outros precisam de mudar ou, pelo menos, os outros precisam de mudar primeiro. Claro, também por cá haveria solidariedade se algo similar ocorresse. Também por cá, estou convencido, surgiriam voluntários como os cinquenta trabalhadores que continuam a tentar arrefecer os reactores da central de Fukushima. Não é isso. É algo mais. Algo que, no dia a dia, faz dos japoneses um povo tímido e reflexivo e de nós um povo irritável, agressivo e fala-barato. A ideia, que talvez tenha nascido de uma imposição superior mas é hoje uma auto-imposição, de que se faz parte de uma comunidade. A ligação ao país. A ligação a uma cultura. A ligação à empresa. Sentimentos de pertença que, no ocidente, não passam de palavras (sim, ainda e sempre as palavras). Que, no Japão, talvez se venham a perder. Que, evidentemente, têm aspectos negativos: o respeito excessivo pelas posições alheias, e em especial pelas posições da hierarquia, pode levar à inércia, como o brasileiro Carlos Ghosn descobriu ao chegar à presidência da Nissan. Pior ainda: em situações limite, não discutir e seguir cegamente pode levar a actos contra a própria vida (não é um acaso que os kamikaze – «vento divino» – sejam uma das mais fortes imagens que temos do Japão) e ao desrespeito dos direitos de quem se encara como inimigo. Mas tem resultados como os que estão à vista. Ajuda, evidentemente, que o Japão ainda seja uma sociedade homogénea. Ajuda, não tenho dúvidas, que seja um país com um nível de vida acima da média. Mas, sejam quais forem as justificações, sejam politicamente correctas ou não, esta filosofia de vida permitirá que o Japão recupere. Fê-lo antes. Fá-lo-á de novo. Paulatinamente. Pacientemente. E esta é outra grande diferença: a percepção de que nada é imediato. Nas décadas de cinquenta e sessenta do século passado, quando os carros japoneses ainda eram olhados com condescendência, técnicos japoneses percorriam os salões automóveis mundiais a fotografar pormenores dos veículos americanos e europeus. A tirar medidas. A anotar tudo o que lhes parecesse relevante. Vinte anos mais tarde, as marcas japonesas assustavam a concorrência. O mesmo aconteceu no sector dos produtos electrónicos e em muitos outros. (Os coreanos fizeram-no a seguir.) Método, rumo, perseverança, sentido do colectivo. É este espírito que permitirá ao Japão recuperar. Aconteça ainda – e esperemos que nada de muito grave – o que acontecer.

  

Portugal, agora. E daí, não. Porque Portugal já está nos parágrafos anteriores e porque não convém misturar tragédia com ópera bufa.

 


Adenda: Sobre este assunto, ler também André Abrantes Amaral, n'O Insurgente.


publicado por José António Abreu às 13:31
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