como sobreviver submerso.

Sábado, 10 de Dezembro de 2011
Há apenas uma Kate no Reino Unido e o seu apelido não é Middleton nem Moss

 

Gostava de discorrer sobre o último álbum de Kate Bush, 50 Words for Snow, um conjunto de sete temas invernosos (mas quentes) entre os quase sete e os mais de treze minutos de duração, nos quais toda a genialidade de Kate mas também todas as suas idiossincrasias, toda a sua indiferença perante as modas e os riscos de parecer ridícula, se encontram bem evidentes. Gostava de discorrer sobre o último álbum de Kate Bush mas alguém que um dia escreveu isto não pode fazê-lo de forma minimamente digna de crédito. E, assim sendo, limito-me a deixar aqui excertos de duas canções (que eu saiba, ela não lançou vídeos de qualquer tema completo, o que se entende considerando a duração destes) e a dizer-vos que é um álbum excelente para ouvir num ambiente quentinho, num bom sistema de som, com chuva (à falta de neve) a cair lá fora.

 



publicado por José António Abreu às 18:35
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Segunda-feira, 16 de Novembro de 2009
Kate e um amigo meu
A inclusão de Aerial na lista que João Távora vem fazendo no Corta-Fitas lembrou-me como, em finais de 1993 ou inícios de 1994, um rapaz de vinte e poucos anos decidiu escrever um conto no qual um rapaz apenas um pouco mais velho (talvez perto dos trinta) elaborava uma carta à mulher de quem decidira separar-se, lembrando a sua vida até ao momento. A carta (e a vida) era pontuada por excertos de letras das canções de Kate Bush. Tanto quanto sei, ele nunca entendeu por que escreveu o conto ou, mais ainda, por que escolheu as letras dos temas de Bush. Consigo pensar num par de hipóteses – talvez por Kate ser uma mulher idiossincrática e inacessível, aparentemente tão afastada da normalidade dele (e do homem e da mulher do conto) quanto perto do seu ideal (muito, muito fantasioso) de mulher; talvez apenas pelo facto de apreciar tanto as letras das canções que se sentiu impelido a construir algo em torno delas – mas, fosse qual fosse o factor que o motivou, o que interessa agora é ter passado horas transcrevendo excertos das letras dos folhetos dos CDs para um caderno, escolhendo depois os mais adequados para cada fase do conto ou – quando não havia outra solução – moldando o conto ao material disponível.
 
Tenho um exemplar. Começa assim:
 
When you left the door was (slamming)
You paused in the doorway
As though a thought stole you away.
I watch the world pull you away.
(...)
Woman, let me in
Let me bring the memories
Woman, let me in
Let me bring in the Devil Dreams
 
      Está acabado. Já não tenho dúvidas. Aqueles momentos de indecisão – mistura de ilusão expectante por ainda ser capaz de ter esperança, de sonhar que ainda é possível que tudo se componha, e de nojo pela falta de coragem para assumir que acabou –, esses momentos não voltarão. Estou determinado a que assim seja. Não quero reentrar no ciclo que vimos repetindo há meses – se calhar, menos abertamente, há anos. Talvez desde o início.
      «És incapaz de amar alguém real!» Atiraste-me a acusação à cara ontem à noite, depois de duas horas de silêncio acusatório, em que tentei simultaneamente perceber do que era acusado e reflectir para ti a hostilidade que me atiravas. Sempre em silêncio, ou quase. Devemos ter trocado no máximo uma dúzia de frases, curtas e discretamente assassinas. Depois sim, mais tarde discutimos. Outra das nossas trocas de queixas e acusações feitas com frieza e ironia selvagem. É curioso como raramente berramos, partimos louça, atiramos objectos. Comentei-o uma vez. Disseste que não sou suficientemente emocional para esse tipo de atitudes. «O Sr. Autocontrolo...» Já não se pode sofrer em silêncio.
      Não sou capaz de amar alguém real? A acusação feriu-me bastante mais do que as habituais tiradas cáusticas com que me costumavas presentear. Não havia o mínimo cinismo na acusação. Era tão pensada, tão sentida, tão definitiva, que não fui capaz de reagir. Percebeste perfeitamente o efeito que as tuas palavras tiveram. Não teres sentido necessidade de dizer mais é prova suficiente.
      Relembrei aquela curta frase inúmeras vezes nas poucas horas que decorreram desde então. Com ultraje, primeiro. Eu tinha-te amado. Verdadeiramente. Talvez ainda amasse. Com dúvida, depois. Não tinham existido tantos e tantos pormenores em ti e no teu comportamento que, mesmo antes do casamento, eu fora afastando como irrelevantes? Seriam afinal importantes – cruciais, até? Com a triste certeza, enfim, de que tinhas razão nessa acusação parcial implícita dentro da tua acusação geral. Se tu és aquilo que vejo hoje, passados quase dez anos desde que nos conhecemos, então eu nunca te amei, de facto. Limitei-me a amar a imagem que me mostraste ou que eu imaginei – vai dar no mesmo e essa dúvida não é campo para acusações. Os pormenores que pareceram irrelevantes durante anos assumiram a sua exacta medida (muito ou pouco racional, não importa) pela primeira vez. A medida exclusiva. A medida que nos exclui um do outro.
      E então? Se não te amei verdadeiramente, quem é que eu amei?
 
When I was a child
Running in the night
Afraid of what might be
Hiding in the dark
Hiding in the street
And of what was following me
 
      Ouvi um incontável número de vezes o meu pai queixar-se, num tom de voz onde a desilusão se misturava com uma raiva nascida do desespero, que eu não era normal. «Está sempre metido em casa, encafuado no quarto, a ler e a ouvir música. Que raio de vida é essa?» A minha mãe calava-se ou dizia que eu era um bom rapaz, sem problemas na escola, à excepção dos comentários demasiado retraído; pouco comunicativo; não participa que vinham com regularidade ao lado das notas nas folhas de final de período escolar. Isso não satisfazia o meu pai. Se, até aos doze ou treze anos, a minha maneira de ser não o incomodou muito, a partir daí, sempre que tentava levar-me a sair de casa para jantares com os amigos (dele; eu não tinha amigos) ou integrado em excursões ao campo ou à praia, e eu dizia que não queria ir, ele ficava desesperado. Do meu quarto, ouvia-o queixar-se à minha mãe enquanto, no leitor de cassetes, ela cantava.
 
She knows that I've been doing something wrong
But she won't say anything.
She thinks that I was with my friends yesterday
But she won't mind me lying
Mmh, because: —
Mother stands for comfort
Mother will hide the murderer.
 
      Ela parecia estar sempre a cantar, no meu quarto. Especialmente por volta dos meus catorze ou quinze anos (há uma dúzia, portanto). Isso fazia desesperar a minha mãe. «A música que tu ouves! Não podes ouvir música normal, como toda a gente?» Mas eu não era normal – não era o que me estavam sempre a dizer? E aquela era a música que eu gostava de ouvir. O presente que mais agradecia ao meu pai e que mais me levava a amá-lo, mesmo nas alturas em que ele parecia ter vergonha de possuir um filho como eu (ainda por cima, único), era o rádio com leitor de cassetes que me oferecera no meu décimo terceiro aniversário. Um rádio grande, estéreo, com um único deck, de uma qualidade que nesses anos eu tomava como sendo alta-fidelidade. Mas alta-fidelidade era a minha. Ao rádio e a ela. A minha mãe outra vez: «Ainda se ao menos tivesse uma voz bonita! Mas é horrível, esganiçada!» Eu dizia: «Não é nada. Ouve-a com atenção! E tenta percebê-la.» Esforço inútil. Até porque a minha mãe nunca falou ou percebeu inglês. Eu, pelo contrário, escolhera-o logo no quinto ano como língua estrangeira principal. E, por volta dos quinze anos, desenrascava-me já bastante bem.
      Era pois com o espírito confuso que ela me defendia dos ataques plenos de angústia do meu pai. A minha auto-exclusão da sociedade, dos ritos próprios dos jovens da minha idade, faziam com que estivesse mais tempo em casa junto dela e isso era bom. Mas o meu comportamento e os meus gostos causavam-lhe a mais profunda das confusões.
      Ouve, dizia eu. Não percebo, respondia ela.
 
I see the people working and see it working for them,
And so I want to join in, but I find it hurts me.
(...)
I want the answers quickly, but I don't have no energy,
I hold a cup of wisdom but there is nothing within
 
      O meu pai era infeliz porque eu não era como ele. A minha mãe era infeliz porque não percebia se devia desejar que eu fosse diferente quando, sendo assim, até estava tão perto dela. Eu era infeliz porque — porque me sentia só.
 
O conto (uma diatribe banal e incoerente, onde se mistura o quão reconfortante pode ser o refúgio na arte com os malefícios de comparar a realidade com mundos e pessoas ideais, inexistentes fora da imaginação) prossegue até regressar ao momento da ruptura do casamento, terminando com as letras de Kate Bush sobrepondo-se a tudo o resto.
 
Last night, in the sky,
Such a bright light.
My radar send me danger
But my instincts tell me to
Keep breathing
 
      Estou a ouvi-la de novo. E confesso que me conforta muito mais do que estas incoerentes linhas que escrevi por não saber de que outra forma lidar com os meus sentimentos. A sua voz pacifica-me, permite que me reconcilie comigo próprio (o ponto em que, passados os primeiros tempos, falhaste mais clamorosamente). A música acaricia-me, no seu ritmo sincopado e erótico. Quase consigo ouvir a minha mãe queixando-se de ser pouco melódica...
 
Take away the love and the anger
And a little piece of hope holding us together
Looking for a moment that'll never happen
Living in the gap between past and future
Take away the stone and the timber
And a little piece of rope won't tie us together
 
      Se lesses o que escrevi achá-lo-ias ridículo. Não foi assim, dirias. Tu nunca me amaste assim, dirias. Tudo o que escreveste não passa de uma fantasia. É nisso que és bom: a inventar fantasias. A lidar com a realidade és péssimo, dirias. Nenhum emprego te satisfaz, ninguém corresponde às tuas expectativas. Serás sempre um frustrado, dirias. Frio. Insensível.
      Não sou frio. Não sou insensível.
 
That cloud, that cloud — looks like Ireland,
C'mon and blow it a kiss now.
But quick 'coz it's changing in the Big Sky
It's changing in the Big Sky now
We're looking at the Big Sky.
You never understood me
You never really tried.
 
      E ainda acredito que tu me amaste.
 
You don't want to hurt me
But see how deep the bullet lies
Unaware I'm tearing you asunder
Ooh there is thunder in our hearts
Is there so much hate for the ones we love
 
      A música... Ela... Tão mais... palpável.          
 
It's alright I'll come 'round when you're not in
And I'll pick up all my things
Everything I have I bought with you
But that's alright too
It's just everything I do
We did together
And there's a little piece of you
In whatever
 
      Precisarei de dizer mais? Talvez mais isto: se não te amei (e recuso a conclusão a que cheguei antes: os pormenores foram apenas pormenores, sem qualquer importância), nunca amei alguém real, de facto, com a possível excepção da minha mãe. Achas esta confissão digna de pena? Mas quantas pessoas alguma vez amaram? Tu?
      Não me faças rir.
 
In the ice, splitting, splitting sound,
Silver heels spitting, spitting snow
There's something moving under
Under the ice,
Moving under ice — through water
Trying to get out of the cold water
"It's me"
Something, someone — help them
"It's me"
 
O rapaz que escreveu o conto – um bom amigo meu, apesar dos embaraços frequentes que me causa – está hoje muito diferente. Acha ele. E eu, mas só às vezes.


publicado por José António Abreu às 13:41
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