Entre outras coisas, o Museu Kafka tem fotos de Praga e de pessoas com quem Kafka se relacionava, páginas originais manuscritas (que, já o verifiquei noutros museus perante páginas de outros escritores, me deixam no estado mais próximo da religiosidade que consigo atingir), filmes interessantes e filmes pomposos, instalações que pretendem induzir um efeito de desorientação (falham), paredes de gavetões tipo-morgue, cada um deles com o nome de uma personagem de Kafka, meia dúzia dos quais abertos para mostrar a primeira edição do livro correspondente. Percebo que os museus tentem inventar formas «apelativas» de mostrar aquilo que se propõem mostrar mas às vezes exageram; enfim, este nem é dos piores. Na verdade, aprecio a visita – que termina de forma inesperada: a porta de saída (que é também a de entrada) encontra-se fechada à chave e nenhum funcionário se encontra na área de recepção. Meia dúzia de visitantes, entre os quais eu, torcem o puxador, entreolham-se, tentam perceber o que se passa. Das salas do piso superior vem o ruído da música e das locuções, o que parece indicar que, por lá, tudo continua a funcionar normalmente. Algumas pessoas procuram outra porta mas esta parece não existir. Nem sequer há cadeiras onde nos sentarmos à espera. Passam dez, quinze, trinta segundos. Um minuto. Verificam-se os telemóveis. A senhora da recepção surge finalmente, esbaforida. Usa a chave para abrir a porta, pede desculpa: tivera que ir à casa de banho. Digo-lhe, em inglês, que já pensávamos que aquilo fazia parte da visita, que se tratava de uma tentativa de lhe conferir um final kafkiano. Arregala os olhos, solta uma gargalhada, garante que não. Cá fora, penso que, assim como assim, até nem seria má ideia. Se alguém lá passar daqui a uns tempos, faça-me o favor de verificar se não a aproveitaram.
Há poucos anos, pouco tempo antes da sua morte, o grande germanista e estudioso de Kafka, Eduard Goldstücker, descreveu-me como ele e outros fiéis comunistas em Praga foram cercados em Dezembro de 1951 no início de uma nova onda de «processos de Moscovo» estalinistas. Quando ele pediu para saber por que razão tinha sido preso, a resposta veio com um sorriso irónico: «Isso é o que você vai ter de nos dizer.»
John Banville, Imagens de Praga. Edições Asa (2005), tradução de Teresa Casal.
O século XX não foi fácil para os checos e para os seus «primos» eslovacos. Antes da Primeira Guerra Mundial, o país nem sequer existia. Depois, a Checoslováquia entrou no que Kundera chamou, de modo quiçá um tudo-nada forçado, «tripla repetição do número vinte». Ganha a independência em 1918, perdeu-a em 1938, quando os líderes dos países vencedores da Guerra se assustaram com as ameaças de Hitler. Em 1948, o país aceitou o comunismo para vinte anos depois perceber que não estava autorizado a introduzir-lhe mudanças – muito menos a abandoná-lo. O poder imposto pelos tanques soviéticos instalou-se em força em 1969 e apenas caiu em 1989. Três vezes vinte. Pelo meio, ainda existem os dez anos que vão de 1938 a 1948. Os anos da ocupação nazi, da perseguição aos judeus, do Reichsprotektor Reinhard Heydrich, uma figura que me fascina tanto como o proverbial olhar do réptil e a que talvez ainda volte – mas aconselho desde já a leitura de HHhH, de Laurent Binet, que a Sextante publicou há pouco mais de um ano. As contas são fáceis de fazer: os checos passaram três quartos do século em guerra ou numa paz regida pelo medo. Medo do próprio governo, medo de governos vizinhos, medo de proferirem uma palavra imprudente ou mal interpretada. Talvez nós, portugueses, devêssemos pensar nisto quanto justificamos pechas nacionais com os quarenta e oito anos de Salazar.
Mas não é minha intenção comparar ditaduras nem estados de alma colectivos. Prefiro centrar-me no génio de Kafka. Permitam-me só mais algumas datas: Kafka morreu em 1924 mas O Processo, escrito cerca de dez anos antes, foi publicado pela primeira vez apenas em 1925. Kafka era judeu e falante de alemão, o que, já na época de início da Primeira Grande Guerra, não constituía combinação fácil. Mas Hitler e Estaline, os campos de concentração e o gulag, a Gestapo e o KGB (e a Státní Bezpečnost, a polícia secreta checa dos tempos comunistas), tudo ainda fazia parte do futuro. Porém, Kafka adivinhava. Ainda que se diga que ele achava os seus enredos mais divertidos do que assustadores ou proféticos, o universo de Kafka é o universo do totalitarismo e, mais especificamente, do totalitarismo moderno. Tão moderno, de facto, que, talvez ironicamente para quem abominava a nascente psicanálise (Kafka apreciava a loucura e detestava que se pretendesse curá-la), é, acima de tudo, um totalitarismo psicológico. Kundera outra vez, em Os Testamentos Traídos (Edições ASA, 1994, tradução de Miguel Serras Pereira): «Se lermos assim O Processo, ficaremos, desde o início, intrigados com a estranha reacção de K. à acusação: sem nada ter feito de mal (ou sem saber o que de mal fez), K. começa logo a comportar-se como se fosse culpado. Tornaram-no culpado. Culpabilizaram-no.» E Kundera mostra como K. segue o processo psicológico típico de alguém que sente estar a agir como culpado sem o ser. Um processo interior, por contraponto ao outro, exterior, que dá nome ao livro, e que tem cinco estádios: Luta vã pela dignidade perdida, Prova de força, Socialização do processo, Autocrítica, Identificação da vítima com o seu carrasco. Na literatura, antes de Kafka, um inocente podia ceder e confessar crimes que não cometera, podia ser formalmente culpado mas, perante si mesmo, mantinha-se inocente. Em Kafka, a culpa é imposta do exterior e é aceite. K., a personagem de O Processo, irá (no estádio 4, o da autocrítica) examinar a sua vida à procura do momento em que se tornou culpado. Já não duvida que o é. Num regime totalitário, o acusador não precisa de conhecer a culpa do acusado antecipadamente. Precisa de, em conjunto com o acusado, a descobrir (releiam, por favor, o excerto de Banville sobre a réplica do interrogador comunista em 1951) pois sabe que toda a gente é culpada de alguma coisa – quanto mais não seja, de um pensamento. E, se até a própria culpa pode vir a ser aceite como real, quão fácil é aceitar a culpa alheia? O poder num regime totalitário vive de pessoas que aceitam a culpa alheia. Se foi preso, alguma coisa terá feito. Reacção apenas humana; reacção decididamente kafkiana. O corolário, como se viu (como Kafka viu), é se fui preso, alguma coisa terei feito. (Em 1984, de Orwell – a quintessência do livro sobre totalitarismo, mas convenhamos que o inglês já assistira a muito no quarto de século que decorrera desde a morte de Kafka – há uma personagem que aceita prisão e castigo e ainda se recrimina por, alegadamente, ter criticado o Grande Irmão enquanto dormia.)
Em Portugal, dizemos frequentemente que, ao ler-se Eça, pode ver-se o país actual. É verdade. Os bons escritores são intemporais – e globais. Mas, ainda assim, Eça descreveu a época em que viveu. Kafka descreveu os cinquenta anos que se seguiram à sua morte. E esperemos que não outros tantos, no nosso futuro.
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