Era o fim-de-semana a seguir ao Natal de 2009. Duas da manhã da noite de sábado para domingo. (Sei-o porque tomei nota; decidi então escrever este post). Preparava-me para desligar o televisor e ir dormir. No ecrã do televisor, Ethan Hawke, sentado numa livraria de aspecto tradicional, falava com alguma dificuldade do livro que escrevera sobre o encontro de um rapaz americano e de uma rapariga francesa num comboio com paragem em Viena. Não me fui deitar. Fiquei à espera dela. De lado, entre estantes apinhadas de livros, hesitante como se ele (Jesse) pudesse não a reconhecer ou, mais realisticamente, com medo do momento em que ele a reconhecesse. Apesar de conseguir visualizar mentalmente o filme cena a cena (livraria, ruas, café, ruas, parque, bateau-mouche, carrinha, acesso à casa de Céline, encontro com os pais, apartamento de Céline), ou até diálogo a diálogo (correcção: apenas diálogo, uma vez que se trata de um único, fluído apesar da mudança de temas, das hesitações, do que está por trás do que é dito), fiquei mais uma vez a assistir até à lenta dança final ao som de Nina Simone, àquele «I know» que para Jesse é como aprender novamente a respirar.
Tudo começou – pelo menos tudo começou para mim, já que falhei os filmes em que ela entrou antes* – com um filho da mãe cheio de talento e de sorte (mesmo tendo morrido aos 53 anos) chamado Krzysztof Kieslowski (àparte totalmente irrelevante: acabei de bater o recorde mundial de tempo mais longo para escrever duas palavras totalizando menos de vinte letras). Kieslowski (como em quase tudo na vida, da segunda vez já é mais fácil, até porque neste caso o copy/paste ajuda) fez uma série de filmes sublimes em que utilizou um trio de actrizes que me fizeram ponderar a mudança de nacionalidade: Iréne Jacob (em A Dupla Vida de Verónique e Trois Coulours: Rouge), Juliette Binoche (em Trois Coulours: Bleu) e Julie Delpy (em Trois Coulours: Blanc). (Acabei por não mudar de nacionalidade porque descobri que, ao contrário das outras duas, Jacob é suíça e não francesa. Arrependo-me? Mais oui, certainement.) Em Blanc, uma jovem Delpy levava um homem a um radical acto de amor. Apesar de ela estar em cena menos tempo do que seria desejável, compreendia-se a sofreguidão do apaixonado: Delpy era luminosa como um sorriso agradecido.
E foi-o tanto ou mais em Antes de Amanhecer, de Richard Linklater, um filme de culto para setecentas e oitenta e oito pessoas que o viram no cinema ou em vídeo e três alienígenas que o viram na TV enquanto procuravam decidir a sorte do planeta Terra (o filme levou-os a pouparem-nos durante mais algum tempo). Com Ethan Hawke, Delpy deu corpo à fantasia «e se?» que toda a gente pondera, num momento ou noutro: e se dois desconhecidos, depois de uma troca de olhares, decidissem começar a conversar e, contrariando os planos que tinham, passassem algum tempo juntos, de modo a confirmar ou infirmar a atracção e evitar desse modo terem que remeter aquele encontro para o arquivo das experiências que poderiam ter constituído pontos de viragem na vida? No filme, Jesse e Céline encontram-se num comboio atravessando a Europa. Ele vai sair em Viena para voar de regresso aos Estados Unidos, ela segue até Paris. Para não interromperem a relação de cumplicidade que se começa a desenhar, saem ambos do comboio em Viena e passam uma noite de conversa, deambulação e descoberta. Que a cidade seja Viena é pormenor não negligenciável mas também não é fundamental. A história funcionaria em Londres, Lisboa ou Nova Iorque. Em todas elas (sejamos caridosos para com Lisboa) há parques onde se pode estar deitado na relva olhando as estrelas. Na manhã seguinte, Céline segue para Paris enquanto Jesse fica em Viena à espera da hora do voo. Porque ainda não têm a certeza se aquilo que sentem um pelo outro é para levar a sério, combinam voltar ali, à estação de comboios de Viena, exactamente seis meses mais tarde para ver se o outro lá está.
Encontram-se apenas nove anos depois, na livraria de Paris, em Antes do Anoitecer. (Se não viram o filme e querem saber se algum deles foi a Viena, a resposta é «sim». Qual deles e por que é que o outro não foi? Ah, isso não conto.) Estão mais velhos, mais desiludidos, menos disponíveis para acreditar um no outro. Têm vidas próprias, compromissos, responsabilidades. Mas ambos ainda se perguntam “E se?”. O filme, escrito a seis mãos por Delpy, Hawke e Linklater, é uma conversa praticamente em tempo real pelas ruas de Paris. Nada mais. E ainda bem. Como quase sempre, basta o essencial.
E bastam estes três filmes. Delpy também participou em Um Lobisomem Americano em Londres e em Os Três Mosqueteiros (era Constance naquela versão em que entravam Charlie Sheen, Kiefer Sutherland e Chris O’Donnell, e em que o nome «D’Artagnan» provocava risadas de cada vez que era pronunciado) mas não vale a pena falar disso. Foi Zoe em Killing Zoe, de Roger Avary. Teve uma participação breve mas explosiva no narcoléptico mas interessante Broken Flowers, de Jim Jarmusch, e outra apenas um pouco mais longa no aceitável The Air I Breathe, de Jieho Lee. E participou, com Hawke (enquanto Céline e Jesse), num curto segmento do peculiar Waking Life, do partner in crime Richard Linklater. Reconhece que podia ter entrado em mais filmes se tivesse sabido jogar segundo as regras de Hollywood: aceitar outros projectos de treta, sorrir, ser simpática para os responsáveis dos estúdios.
A verdade é que, sendo atraente, Delpy não é uma beleza estonteante, como a típica estrela de cinema, e também não se comporta como uma. Mostra indícios da idade que tem (quarenta e um feitos há nove dias), dá entrevistas de jeans, toca no pescoço ou nos dentes enquanto pensa no que dizer, ri-se de forma quase explosiva. Há dois tipos de beleza, em actrizes como em quaisquer outras mulheres (e talvez homens): a beleza inacessível, intimidante, alicerçada no aspecto físico e numa pose quase permanente, e a beleza mais humana, a que pode ou não corresponder uma grande beleza física mas a que corresponde sempre uma espontaneidade e uma inteligência que pedem contacto. Delpy é um exemplo perfeito do segundo grupo. Digamos que poucos homens (ou mulheres) imaginarão cruzar-se na rua com Angelina Jolie mas já parece mais possível partilhar acidentalmente um banco de jardim com ela. E encetar uma conversa descontraída e interessante, iluminada pelo aquele fantástico sorriso.
* Détective, de Jean-Luc Godard, e Europa, Europa, de Agnieszka Holland, merecem ser referidos.
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