como sobreviver submerso.

Domingo, 1 de Maio de 2011
As expectativas de mães e filhos (dia da mãe: 2)

 

As expectativas das mães.

 

"Are there many unhappy boys in your school, Richard?"

"I don't know. Maybe."

"Do the boys miss their parents?"

"Sure."

"I hope you're friends with them. Don't ignore them."

She had the sunny, myopic belief, like all mothers, that her son was popular and had the power to "make friends" with anyone.

Joyce Carol Oates, Expensive People.

 

"Acho que o Dinis vai ser o sucessor do tio. Quando o Ronaldo nasceu, a minha mãe disse logo que ele ia ser jogador, e eu vou arriscar dizer o mesmo com o meu filho."

Kátia Aveiro (mais conhecida como irmã de Cristiano Ronaldo), à revista Vidas, do Correio da Manhã, em 2010.

 

Joyce Carol Oates e Kátia Aveiro para arranque de um post. Enfim, suponho que mais cedo ou mais tarde alguém havia de o tentar. Vamos lá então. A «solarenga» e «miópica» crença maternal de que os filhos são pequenos génios, apreciados por todos os que com eles contactam, será quase sempre benigna, ainda que a possibilidade de que as crianças a interiorizem e tenham dificuldades em perceber por que motivo outras pessoas – colegas, professores, familiares menos próximos – não a partilham seja real. Normalmente, a ilusão maternal é mais desejo do que imposição (a paternal será com frequência uma mistura menos simpática) mas, ainda assim, por vezes a expectativa é tal que, quando começam a ter noção dela, os filhos reagem mal. Apesar de saberem que as mães só desejam o seu bem (casos extremos exceptuados), não é fácil lidar com a pressão. Saberá Dinis, o filho da irmã de Ronaldo, aceitar os desejos da mãe? E o que sentirá se não tiver jeito para o futebol? Ou saberá Kátia domar sonhos e ilusões e aceitar que Dinis não terá de ser um jogador do calibre de Ronaldo para ser o filho que desejou? É provável que sim, que ela o consiga fazer. Mas talvez Dinis tivesse uma vida um pouco mais fácil se a mãe não andasse a anunciar o que espera dele. Evitaria a eventual sensação de falhanço; a frustração de perceber que as suas incapacidades haviam forçado a mãe a baixar as expectativas.
 
As expectativas dos filhos.
  
In that day I became a Minor Character. I slipped out of focus. It's difficult for you readers to understand my becoming a Minor Character because 1) you can't imagine anyone except yourself being Major, hence my becoming Minor should be no great shock; 2) you don't believe a genuine Minor Character should exhibit so much anguish, pain, tedium. It's ridiculous, like a vehement pamphlet put out by an organization of white laboratory mice.
Anyway I, Richard Everett, became a Minor Character. This is the opposite of schizophrenia and yet closely related, according to Dr. Saskatoon; there is no splitting of the ego in two or three but a curious case of disappearance, like a snake swallowing itself or a pocket pulled out when there's no pocket there to be pulled out.
Joyce Carol Oates, Expensive People.
 
As expectativas funcionam nos dois sentidos. Porém, enquanto os filhos fazem disparar as dos pais mas não podem ser responsabilizados por isso, os pais moldam as dos filhos e têm que assumir responsabilidade por muito daquilo em que eles acreditam. Richard, o miúdo do livro, sente que a mãe deixou de lhe prestar a atenção devida. Pior: sente que nunca foi o centro da vida dela mas apenas um Minor Character. Não importa verdadeiramente se tem razão: as crianças ainda não sabem contemporizar. Richard assassina a mãe. (Como Oates escreveu no posfácio incluído numa reedição do livro, o que são os assassinatos senão confissões de impotência?) A maior expectativa que uma mãe cria num filho é a de nunca o abandonar ou preterir, consiga ele atingir o estatudo de maior futebolista do mundo ou falhe todos os objectivos a que se propôs. A maior tarefa dela, manter-se à altura enquanto o faz perceber que recusar-lhe algo ou ter outros interesses não equivale a já não gostar dele. No fundo, garantir-lhe a hipótese de ser criança e ensiná-lo a ser adulto. Vencendo medos e hesitações, quase todas as mães cumprem a tarefa. Estão por isso de parabéns, hoje ou em qualquer outro dia do ano.


publicado por José António Abreu às 15:30
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Quinta-feira, 7 de Janeiro de 2010
Ainda a senhora de 71 anos
Tenho que enviar um postal à Joyce Carol Oates agradecendo a ajuda que me tem dado na promoção deste blogue. Ao José Mário Silva, por isto, agradeço aqui.


publicado por José António Abreu às 13:35
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Quinta-feira, 24 de Dezembro de 2009
Família
In a family, what isn´t spoken is what you listen for. But the noise of a family is to drown it out.
 (…)
Members of a family who’ve lived together in the heated intensity of family life scarcely know one another. Life is too head-on, too close-up. That was the paradox. That was the bent, perplexing thing. Exactly the opposite of what you’d expect. For of course you never give such relationships a thought, living them. To give a thought – to take thought – is function of dissociation, distance. You can´t exercise memory until you’ve removed yourself from memory´s source.
 
Joyce Carol Oates, We Were the Mulvaneys
 
Mas esta não é a época do ano adequada para nos removermos do âmbito familiar e, por conseguinte, para raciocínios minimamente objectivos em torno do que é e como funciona uma família. Esta é a época do ano para mergulhar no tal ruído. Para fazer parte dele. Deixem-se as reflexões – e a tristeza – aos que, por uma razão ou por outra, não têm família.
 
E Bom Natal.


publicado por José António Abreu às 11:44
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Quarta-feira, 7 de Outubro de 2009
A minha paixão por uma senhora de 71 anos

Por muito pouco politicamente correcto que, hoje em dia, isto pareça ser, sou atraído por mulheres. Sou atraído por inteligência. Sou atraído por beleza ligeiramente off-beat. Tenho uma reverência quase patológica por bons escritores.
 
Vi, ainda antes de ler qualquer página escrita por ela, uma fotografia de Joyce Carol Oates. Estava-se na segunda metade dos anos oitenta mas a foto devia ter sido tirada dez ou quinze anos antes, andava eu de calções e ela já dava aulas há mais de uma década. A imagem, a preto e branco, mostrava uma mulher magra, com pele muito clara, cabelo preto encaracolado, olhos enormes entre o susto e o deslumbramento, enquadrados por óculos ainda maiores. Não era uma mulher sensual no sentido habitual do termo. Era uma espécie de fada intelectual, uma Virginia Woolf (que não me lembro se, à época, já lera) menos deprimida. Uma nerd das letras. De certa forma, um cartoon para intelectuais. Talvez tenha sido isso a atrair-me: Oates era uma mulher e uma escritora mas também uma personagem que parecia resultado do cruzamento de Mr. Magoo com Olivia Palito. (Não chamem já a ambulância, por favor.)
 
O primeiro livro dela que li foi Marya; a Life (1986), numa edição que tem hoje as folhas tão amarelas quanto a elegante sobrecapa que o Círculo de Leitores colocava nos livros à época. Para um rapaz alimentado a policiais até perto do final da adolescência foi uma experiência estranhamente gratificante. O livro é vagamente autobiográfico, narrando metade da vida de uma mulher que nasce numa família pobre, perde o pai cedo (a relação das mulheres com os pais, ausentes de diversas formas, é recorrente na obra de Oates), é abusada por um primo que morre pouco depois (o final trágico dos homens também) e se transforma numa intelectual respeitada, sendo que «intelectual» é relevante, pois ela parece manter, ao longo das carreiras académica e profissional, e até das relações amorosas, um distanciamento analítico em relação a tudo o que lhe sucede («Ela gostava de pensar em Marya Knauer» – colocar Marya a pensar em si própria na terceira pessoa não é, obviamente, um acidente – «como alguém frio, que não se comovia, e lenta a cair em tentação.») De entre as dezenas de livros de Oates, Marya: a Life é dos mais lineares e fáceis de ler e, à primeira vista, é também daqueles onde a violência é mais subtil.

Não que seja difícil ler Oates. Difícil – praticamente impossível, mesmo – é ler tudo o que Oates publicou. A explicação é simples: ela escreve mais depressa do que qualquer pessoa consegue ler. E uso «praticamente» porque, como nos jogos de vídeo, em que aparecem sempre uns maluquinhos que dedicaram meses da vida a aperfeiçoar a passagem de todos os níveis de um jogo, apanhando todos os bónus e retirando todas as décimas de segundo que é humanamente possível retirar, talvez existam duas ou três pessoas que leram tudo o que Oates publicou. Mas duvido muito. Oates publicou o primeiro conto, In the Old World, em 1959, e o primeiro livro, With Shuddering Fall, em 1964. Admito que até 1964 fosse possível acompanhar a obra dela sem dificuldade mas depois, enquanto o tal maluquinho lia um livro, ela já escrevia o seguinte, num atraso não só irrecuperável como crescente: creio que só descurando o contacto humano, a alimentação sólida e a higiene pessoal será possível ler tão depressa quanto Oates escreve (mas não mais depressa). Por outro lado, atendendo ao tempo que passou desde o tal primeiro livro, é provável que o maluquinho já tenha morrido enquanto Oates continua tão prolífica como sempre. Noto cepticismo? São necessárias provas? No site da universidade de S. Francisco dedicado a Oates são indicados 67 romances (o último com data de publicação de 2010), 32 volumes de contos, 8 volumes de poesia, 8 recolhas de peças teatrais, 12 livros de ensaio e não-ficção, e 8 obras para crianças e adolescentes. Se não me enganei nas contas, o total dá 135. Ainda não ao nível de Simenon em número de livros escritos (o criador do comissário Maigret terá escrito mais de duzentos) mas provavelmente bastante acima em número de páginas. E, para fingir que a menção a Simenon tinha uma dupla finalidade, refira-se que Oates também se permitiu publicar livros policiais (não um nem dois, mas oito) sob o pseudónimo Rosamond Smith e livros de suspense (três) sob o pseudónimo Lauren Kelly.
 
Os leitores atentos terão reparado que usei (por duas vezes) «tudo o que Oates publicou» e não «tudo o que Oates escreveu» (os outros deviam ter vergonha e voltar ao início do parágrafo anterior). A razão é ser mesmo absolutamente impossível ler tudo o que ela escreveu: antes de publicar o tal primeiro livro, Oates admite que teve um período em que escrevia freneticamente mas atirava os livros para o caixote do lixo assim que os considerava terminados. Se Oates falasse tanto quanto escreve seria uma pessoa com quem eu teria pesadelos.
 
Os críticos salientam que esta fúria criativa dá origem a um elevado número de obras menores. Oates defende-se dizendo que o importante não é a quantidade de obras produzidas, nem sequer que a qualidade delas seja irregular, mas sim a força das principais. A longo prazo, pode ter razão: Balzac escreveu (em apenas 51 anos de vida) cerca de uma centena de livros mas poucos leitores ou críticos conseguirão hoje mencionar mais do que, vá lá, uma dúzia, muito menos encontrar exemplares nas livrarias. O problema é que, na actualidade, a publicação de tantas obras prejudica Oates. E suspeito que ela sentirá uma satisfação mitigada ao constatar, dezenas de anos depois de falecer, que duas ou três obras subsistiram e lhe consolidaram a fama. Mas talvez esta declaração, incluída numa nota à reedição de 1990 de Expensive People, o seu terceiro romance, originalmente publicado em 1968, lance alguma luz sobre o frenesi criativo de Oates: «Normal men and women – by whom I mean, I suppose, non-novelists – may be surprised to learn that novelists are haunted by a quickened sense of mortality when they are writing novels; the terror of dying before the work is completed, the interior vision made exterior, hold us in its grip.» Ter medo da morte, acrescento eu, é também uma forma de sentir que se está vivo. Como outros autores, Oates parece necessitar de escrever para conseguir ambas as sensações. Mas, ao contrário deles, não faz disso um drama.
 
De qualquer modo, a questão levanta outra, não muito original mas ainda assim interessante: até que ponto o facto de alguns escritores necessitarem de uma produção extensa para criarem meia dúzia de obras memoráveis os torna menos bons do que aqueles que o conseguem fazer escrevendo apenas, digamos, seis? De cada vez que inicia um livro Oates espera certamente que ele seja excelente. Por que é que isso não acontece? E deve esse facto ser penalizador na apreciação que se faz da obra global de um escritor? Afinal, dos quinze romances que Don DeLillo escreveu até hoje, apenas dois ou três são excelentes. E o facto de Thomas Pynchon ter escrito somente oito livros em quase cinquenta anos, mesmo assumindo – oh, alma caridosa que sou – que são todos óptimos, torna-o automaticamente no melhor autor dos três? Não estarão os críticos enamorados da ideia do autor-sofredor – quase sempre homem –, que leva anos a parir um livro e está convencido de que explicou o mundo com ele?
 
A proliferação de romances e volumes de contos escritos por Oates é uma das razões principais para que, apesar de ocasionalmente se falar dela como possível vencedora do prémio Nobel, poucos acreditem que alguma vez o venha a ganhar. Atendendo aos dúbios critérios do comité (ou simplesmente por ser constituído por pessoas louras), é difícil avançar com um grau de probabilidade mas outros dois factores jogam contra Oates: primeiro, nos Estados Unidos há pelo menos quatro escritores rotulados habitualmente como mais merecedores do Nobel, sendo que, como ela, todos já atingiram uma provecta idade: Philip Roth, Cormac McCarthy e os já mencionados Don DeLillo e Thomas Pynchon; depois, o estilo de Oates é, com frequência, pouco literário. (O Nobel de 2009 é anunciado amanhã e, de acordo com o Senhor Palomar, as casas de apostas estão bastante mais optimistas do que eu.)
 
A escrita de Oates começou relativamente convencional e foi sofrendo alterações ao longo dos tempos. Curiosamente, parece que o entusiasmo dela aumentou com a idade. E «entusiasmo» é a palavra-chave: a escrita de Oates passa quase sempre por um entusiasmo tão evidente quanto o de um miúdo descobrindo algo novo, seja bom, mau ou simplesmente incompreensível. Ela usa mais pontos de exclamação num livro que a maioria dos escritores «sérios» na totalidade das suas obras (o Senhor Palomar e FJV devem detestá-la), e é capaz (dando com frequência a sensação de o fazer por vontade de testar limites e de abanar o leitor pelas lapelas) de recorrer a longos trechos quase em stream of conciousness ou de pejar o texto com palavras em maiúsculas (em Foxfire, gosto especialmente da frase «o que nos afasta da ANû.) E depois há o itálico. Oates polvilha-o pelas páginas dos livros como confetti caído nas ruas depois do desfile carnavalesco, numa tentativa de transmitir as sensações e pensamentos da personagem em torno de quem o livro gira. As minhas capacidades de percepção extra-sensorial notam alguns trejeitos de repulsa nos dois leitores e meio que chegaram aqui. Admito que Oates comete exageros. Veja-se o início de The Gravedigger’s Daughter: «’In animal life the weak are quickly disposed of.’ He’d been dead for ten years. Buried in his mangled parts for ten years. Unmourned for ten years. You would think that she, his adult daughter, a man’s wife now and the mother of her own child, would be rid of him by now. God damn she had tried!» Sim, eu também estremeço. Suponho que a ideia é essa, aliás. Fazer-nos estremecer. Mas, ok, se calhar não como se estivéssemos no lugar do Bob Hoskins no final da cena do desnudamento em The Crying Game. Seja como for, excessos à parte, por que são as evidências do entusiasmo tão negativas? Ainda por cima quando muitos dos livros de Oates são contados do ponto de vista de jovens mulheres excitáveis? No ensaio A Um Jovem Escritor, incluído em A Fé de Um Escritor (edição Casa das Letras), Oates escreve: «Nunca tenha vergonha do assunto nem da paixão que sente pelo assunto.» Ela certamente não tem mas os críticos e os suecos louros talvez tenham. Nos dias que correm, o excesso de paixão parece pouco intelectual. Romeu e Julieta, se escrita e encenada agora, seria provavelmente recebida com sobrolhos erguidos e risadinhas galhofeiras.
 
É verdade que a avalanche de palavras que Oates, em todo o seu entusiasmo, por vezes despeja sobre o leitor (nas obras mais longas, quase sempre) se pode tornar cansativa. Como Terrence Rafferty referiu no The New York Times quando analisou The Falls, «there's nothing coy about the fiction of Joyce Carol Oates: she just keeps coming at you with that breathless voice, book after book after book, daring the reader to find her ridiculous, embarrassing, annoyingly insistent.» Também por isso não é fácil ler tudo o que Oates publicou. Os riscos de overdose seriam elevadíssimos. (Imaginem-se a ler dezenas de Wuthering Heights em sequência.)
 
Passemos à frente. O universo de Oates é feminino mas as mulheres de Oates não têm vidas – ou mortes – fáceis. São regularmente abandonadas, maltratadas, assassinadas. Momentos de paz precedem sempre tempestades. A culpa é normalmente dos homens que são, por actos ou omissões, uns canalhas. Mesmo quando não parecem ter culpa, têm-na. Mesmo quando são vítimas, têm-na. Porque controlam ou condicionam a vida das mulheres, porque as fazem ter esperanças. Como Marya Knauer (de Marya: a Life) que vê o professor Fein morrer pouco tempo após o início da relação. Mas ele era casado e, claro, também nada correria bem se ele permanecesse vivo. Ou como Kelly Kelleher, que tem perfeita consciência (as mulheres de Oates cometem erros – muitos erros – mas são quase sempre inteligentes) de que não deve envolver-se com o senador em Black Water. Ou como Marylin, na «ficção» que é Blonde, entrando em tudo com uma paradoxal mistura de esperança e fatalismo. A escrita de Oates é feminista numa perspectiva fatalista: as mulheres são demasiado inteligentes para sofrerem o que sofrem às mãos dos homens (que, nos livros dela, também são com frequência inteligentes) mas não conseguem evitá-lo porque, por muito que se procurem convencer do contrário, não querem ou não podem passar sem eles. Há excepções. Legs Sadovski, em Foxfire, é uma excepção. Legs lidera um gang de raparigas que entram numa espiral de libertação pela violência, no que pode ser visto (mas é uma perspectiva redutora) como uma espécie de Thelma e Louise adolescente (o livro foi passado a filme – fraquinho – em 1996, com uma jovem Angelina Jolie no papel de Legs). Não significa isto que os homens acabem bem nos livros de Oates. Não acabam. Morrem, são abandonados, espancados ou presos com frequência. Só que normalmente mereceram-no. Ou então mereceram-no as mulheres que os amam. Em Rapariga Negra, Rapariga Branca (edição recente da Sextante), que à primeira vista parece contar a história do relacionamento de duas universitárias colegas de quarto em meados dos anos setenta, ambas desejosas de esconder aquilo que acham que são (Genna, a branca, sente-se privilegiada por ser da família que é e por conseguir os resultados académicos que consegue; Minette, a negra, sente-se uma fraude, aceite mais por questões políticas que pelas capacidades académicas) tão ou mais importante é a relação de Genna com o pai, um advogado activista dos direitos sociais, que ela idolatra mas que sempre a preteriu em favor das causas que defende. E se, no final, Minette morre (não estou a dar informações que não surjam no primeiro parágrafo), a verdadeira surpresa (e punição) é o que acontece ao pai de Genna – e como isso se reflecte nela própria. De certa forma, a morte de Minette é apenas um pretexto para que Genna possa revolucionar a relação com o pai (eu sei que escrevi lá atrás sobre o assunto mas convém relembrar que a relação com o pai é fundamental para as heroínas de Oates e definidora de muito do que são e fazem), punindo-o (com custos graves para si mesma) pelos anos em que ele esteve ausente. Não há muita gente inocente nos livros de Oates. Ou melhor: a inocência é também uma maldição.
 
As mulheres que conheço que já leram livros de Oates não os apreciaram particularmente. Acharam-nos demasiado duros. Estranhei. Pensei depois que talvez seja natural: por que haveriam as mulheres de gostar de ler sobre mulheres cheias de capacidade que são preteridas, abandonadas, maltratadas ou assassinadas? Por que gostariam as mulheres de ler sobre os seus temores? E, ainda assim, não estou certo de que seja esse o factor que as fez recusar os livros de Oates. Essas mulheres tinham, à época em que os leram, menos de trinta anos. Pergunto-me se mulheres de quarenta ou cinquenta, com outra experiência de vida, os apreciarão mais. Não seria necessariamente coisa boa, claro.
 
Tenho ainda mais uma dúvida mas é tão pessoal que quase me recuso a encará-la. Por que gosto eu dos livros? Gostarei deles por, ao apresentarem-me mulheres inteligentes (logo, atractivas) e homens que, por insensibilidade ou canalhice, as tratam mal, me permitirem uma sensação de ultraje e elevação moral? Será que leio pensando «se fosse eu em vez desse sacana de senador, Kelly, nunca permitiria que morresses afogada dentro de um automóvel»? Não tenho a certeza. Sei é que há algo que me faz voltar a Oates. Apesar de ocasionalmente me cansar (por muito que lamente ter de o reconhecer, eu também daria o Nobel a Roth ou a McCarthy), há em Joyce Carol Oates uma genuinidade, uma clareza de intenções, uma ânsia de escrever que, numa mulher de setenta e um anos, é simplesmente impressionante. E, a cada três ou quatro anos, acabo por ler mais um livro dela. Um dos seis ou sete que publicou entretanto.
 
(Fotos de Mary Cross e Juliet Van Otteren, retiradas daqui.)


publicado por José António Abreu às 12:59
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Sábado, 25 de Julho de 2009
Reticências

Estou-me a rir enquanto transcrevo este episódio.

Recordo-o perfeitamente: em especial o fim.

AS RAPOSAS DE FOGO DESAFIAM A MORTE!

 

Senhor Palomar (nome fictício) é a sensação da blogosfera nacional do último par de dias (Simplex e Jamais à parte). Vá-se lá saber porquê (eu tento explicar já a seguir), lembra-me um dos senhores do bairro de Gonçalo M. Tavares. Talvez (cá está) porque Italo Calvino escreveu um livro chamado Senhor Palomar (que não li) em que (segundo leio) o Senhor Palomar era um homem ingénuo e bem intencionado que, através do poder do intelecto, tentava colocar ordem na realidade (com, deve ser escusado acrescentá-lo, resultados mitigados). E porque um dos livros de Tavares (que li; também não se demora muito) é o Senhor Calvino. Provavelmente isto é só uma teoria disparatada mas não mais que algumas que têm surgido em blogues muito mais conceituados do que este sobre temas muito mais importantes para o nosso futuro. Enfim, seja lá o Senhor Palomar quem for (espero que se esteja a divertir), ele propôs ontem banir o ponto de exclamação. Francisco José Viegas, que apresentou o Senhor Palomar ao mundo (pelo menos a um mundo mais amplo) e assinou um comentário no blogue do Senhor Palomar com o nick F, fazendo-me ponderar se Fernanda Câncio se teria esquecido da tecla Caps Lock premida, rapidamente o apoiou e acrescentou as reticências à lista de sinais de pontuação a eliminar. Ainda estou a pensar no assunto (às vezes sou de raciocínio muito lento) mas acho que não apoio a proposta no que toca às reticências. E tenho reticências quanto à eliminação do ponto de exclamação. Não que ache a ideia má. Não acho. Pesquisem neste blogue e encontrarão muito poucos (espero). Mas, levada ao limite, uma tal regra obrigar-me-ia a deixar de ler Joyce Carol Oates. E eu (estou até a preparar um post sobre o assunto que pode ser publicado em qualquer instante entre o instante imediatamente a seguir a este post sobre o senhor Palomar ser publicado e, digamos, o final do Verão) tenho um fraquinho pela senhora (sim, não é apenas pela obra), apesar de ela já ter setenta e um anos. Pelo que, reticências.

 

Excerto: Raposas de Fogo – confissões de um “gang” de raparigas, de Joyce Carol Oates.

Edição Círculo de Leitores; tradução de Cristina Lourenço.



publicado por José António Abreu às 00:03
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Sexta-feira, 10 de Julho de 2009
Vai ser preciso mais
Deambulando por uma livraria à hora de almoço vi numa estante, lado a lado, duas lombadas com cores diferentes: uma escarlate, a outra azul. Em ambas, as palavras “Blonde” e “Joyce Carol Oates”. Pensei: olha, alguém decidiu reeditar o livro, dividindo-o em dois volumes. A ideia não me pareceu má. Por um lado, a edição da Notícias já tem uns anos; por outro, se ficam mais caras, obras volumosas lêem-se muito mais confortavelmente divididas em volumes (Montanha Mágica, estou a olhar para ti). Como nunca cheguei a comprar Blonde (uma ficção sobre os acontecimentos reais da vida de Marilyn Monroe), peguei no primeiro volume. Folheei-o. Li algumas frases avulsas. “Aprendizado difícil”? “Vestido em estilo coquetel”? “Suéteres justas e maiôs”? “Precisou comprar um carro de segunda mão para se locomover por LA”? Chequei a edição. Globo Livros. Av. Jaguaré, S. Paulo, Brasil. Recoloquei o livro na estante. Afastei-me. Vai ser preciso mais do que um acordo ortográfico.


publicado por José António Abreu às 16:52
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