como sobreviver submerso.

Quarta-feira, 5 de Outubro de 2011
De como por vezes os suecos são tontos, os americanos sensatos e os escritores do Liechenstein referidos com displicência

ENTREVISTADOR

É dito com frequência que os seus livros recentes parecem mais romances do século dezanove do que do século vinte e um.

 

FRANZEN

As pessoas da Academia Sueca, que atribuem o Prémio Nobel, confessaram recentemente o seu total desinteresse na produção literária americana. Dizem que somos demasiado insulares, que não escrevemos sobre o mundo, escrevemos apenas sobre nós próprios. Considerando quão americanizado o mundo se tornou, eu penso que provavelmente eles estão errados – provavelmente nós dizemos mais acerca do mundo escrevendo acerca de nós próprios do que um autor sueco escrevendo acerca de uma viagem a África. Mas ainda que estejam certos, não penso que a nossa insularidade seja necessariamente uma coisa negativa.

A Rússia do século dezanove surge-me como uma boa analogia. A Rússia é o seu próprio pequeno mundo, famoso pela sua capacidade para repelir invasões por parte de potências estrangeiras, e tem mantido um estatuto de superpotência independente ao longo de séculos. Talvez essa insularidade, essa sensação de viver num mundo completo mas não exactamente universal, crie certos tipos de possibilidades literárias. Todos os velhos autores russos estavam dramaticamente envolvidos na questão do que aconteceria ao seu país e a questão não parecia inconsequente porque a Rússia era uma nação vasta. Enquanto que, quando um habitante do Liechenstein se debate com o futuro do Liechenstein, quem é que verdadeiramente se interessa? É possível que os Estados Unidos e a Rússia sejam exactamente do tamanho adequado para gerarem um certo tipo de projecto romanesco expansivo. A Inglaterra também o foi, durante um tempo, graças ao seus império, e a época de ouro do romance inglês coincidiu com o seu domínio imperial. Mais uma vez, não era o mundo todo, era apenas um microcosmos bastante grande. O verdadeiro cosmopolitismo é incompatível com o romance porque os romancistas precisam de particularidade. Mas nós também precisamos de espaço para nos movermos. E temos a sorte de ter ambos aqui. Dito isto, eu não me sinto particularmente como um autor do século dezanove. Todos as questões que o modernismo tornou problemáticas continuam a ter de ser negociadas em cada livro.

Jonatahn Franzen, em entrevista à The Paris Review (nº 195). A tradução é minha. A entrevista em inglês encontra-se disponível aqui.

 

Basta ver a lista de laureados nos últimos, vá, quinze anos, para perceber o que o Comité Nobel entende por escrever acerca do mundo. Se em algumas escolhas podem detectar-se motivações políticas extra-literárias (Fo, Saramago ou Pinter, por exemplo), se parece existir uma preocupação em abranger todos os continentes, etnias e sexos (e em ir corrigindo desequilíbrios que até podem ser literariamente justificáveis mas são mal vistos na época de sensibilidades exacerbadas em que vivemos), se é notória a selecção de autores com obras transmitindo mensagens «adequadas», percebe-se também uma linha geral de busca do exótico, do «diferente», do – exagerando apenas um pouco – étnico. De tal forma que quase todos os laureados provenientes de países «ocidentais» tiveram de fazer pelo menos uma de três coisas para ganhar o prémio (vários fizeram duas ou mesmo as três): apresentar uma forte mensagem politicamente correcta (Grass, Kértesz, Pinter, Jelinek, Lessing, Müller), que em vários casos encaixava perfeitamente no momento histórico que se vivia (notório no caso de Pinter como, apesar de não ser exactamente um escritor «ocidental», também no de Pamuk), sair da realidade «normal» para o mundo da alegoria ou de uma realidade hiperbólica (Saramago, Le Clézio, Jelinek), localizar também eles obras em geografias não-ocidentais (Le Clézio, Lessing). Os principais autores norte-americanos não se dispuseram a nada disto e o resultado, provando que a aversão da Academia Sueca é real, foi nenhum deles ter obtido o Nobel.

 

E o pior é que Franzen está certo. Passando sobre a discutível afirmação acerca da representatividade e interesse de uma obra sobre os problemas do Liechenstein (faltar-lhe-ia escala, sim, mas não é por faltar escala à República Dominicana que A Festa do Chibo, de Vargas Llosa, deixa de nos interessar), o mundo «americano» é, em grande medida, o mundo actual e os grandes autores americanos mostram-no-lo bastante mais (McCarthy de uma forma menos óbvia do que os restantes mas ainda assim muito americana – e, de qualquer modo, a sua escrita é demasiado apocalíptica para que ele seja alguma vez considerado pelas cabecinhas louras dos suecos) do que autores escrevendo sobre realidades mais específicas. Esses relembram-nos o que também existe. E é importante que o façam; obrigam-nos a sair do casulo. Mas a esmagadora maioria dos leitores de literatura vive os problemas das personagens de Roth ou de Franzen, não das de Saramago. Pensa o mundo a partir de posições parecidas com as de Nathan Zuckerman (o alter-ego de Roth) ou Gary Lambert (de As Correcções, de Franzen) e não a partir de posições similares às de David Lurie (de Desgraça, de Coetzee) ou de Mr. Biswas (de Uma Casa para Mr. Biswas, de Naipaul). Não pretendo dizer com isto que umas são melhores do que as outras. Mas a circunstância dos principais autores americanos se debruçarem sobre a América e não directamente sobre outras partes do mundo não retira um átomo de relevância ao que vêm produzindo. Pelo contrário: na extravagante demanda da Great American Novel, os americanos (os actuais e muitos dos falecidos nas últimas décadas: Bellow, Gaddis, Foster Wallace, Mailer, etc.) não estarão até longe de procurarem o grande romance do mundo actual – do mundo como ele cada vez mais o é. Recusar a relevância de gente como Roth, DeLillo, McCarthy, Oates, Pynchon ou (mas seria sempre demasiado cedo para ele) o próprio Franzen revela uma miopia atroz. Felizmente a lógica não terá sido sempre esta ou Bellow nunca teria conseguido o Nobel. A menos que os suecos o tenham premiado exclusivamente por causa de Henderson, O Rei da Chuva.

 

Adenda: o Prémio Nobel da Literatura de 2011 é anunciado amanhã ao meio-dia, hora portuguesa. Alguém aposta num americano?



publicado por José António Abreu às 20:52
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Quarta-feira, 27 de Abril de 2011
Regras da boa ficção

Leio a primeira vintena de páginas de Liberdade, de Jonathan Franzen, e enfrento um problema cada vez mais comum: não consigo decidir se a descrição das personagens é brilhante, se apenas me parece brilhante por estar tão conforme as regras da boa ficção. Televisiva, ainda por cima.



publicado por José António Abreu às 20:38
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Segunda-feira, 17 de Janeiro de 2011
Outra

Havia, claro, uma maneira óbvia de se libertar: podia dizer sim em vez de não a uma dúzia de secretárias, transeuntes e balconistas que em qualquer dada semana reparavam na sua altura, no seu cabelo grisalho cor de xisto, no seu casaco de pele de bezerro e nas suas calças de alpinismo francesas e o fitavam nos olhos como se dissessem: a chave está debaixo do tapete. Mas ainda não havia no mundo nenhuma passarinha que preferisse lamber, nenhum cabelo que preferisse envolver com a mão como um cordão de campainha de seda dourada, nenhum olhar no qual preferisse mergulhar o dele durante o seu próximo orgasmo, em vez dos de Caroline. O único resultado garantido de ter um caso seria acrescentar outra mulher desaprovadora à sua vida.

Jonathan Franzen, Correcções.

Edição D. Quixote, tradução de Fernanda Pinto Rodrigues.

 

Este raciocínio pode ser digno de admiração. Pode também ser digno de pena, se se entender não passar de uma desculpa usada por gente receosa de correr riscos ou já excessivamente desencantada para acreditar em alternativas. A mim pareceu-me tão evidente que senti necessidade de verificar ainda ter pulsação.



publicado por José António Abreu às 08:40
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