como sobreviver submerso.

Domingo, 18 de Setembro de 2011
Amor e sexo - surpresa e inveja dos deuses

Este amor, este amor mortal, foram eles que o criaram, algo que nós não planeámos, previmos ou sancionámos. Como é que não haveria de nos fascinar? Demos-lhes aquela irresistível compulsão no baixo-ventre – Eros e Ananké trabalhando de mãos dadas –, só para que eles superassem a sua repulsa pela carne do outro e se unissem de bom grado, mais do que de bom grado, no acto de procriação, já que, uma vez que os criámos, detestámos a ideia de os deixar perecer, sendo eles, no fim de contas, a nossa obra, para o bem e para o mal, ou, como é muitas vezes o caso, para o mal. Mas, olhem!, vejam o que eles fizeram desta trapalhada do esfreganço. É como se alguém tivesse dado a uma criança birrenta umas quantas aparas de madeira e um balde de lama para ela ficar sossegada e, de imediato, ela tivesse erguido uma catedral, com direito a baptistério, campanário, cata-vento e tudo. No recinto desta consagrada casa, oferecem-se uns aos outros refúgio, desculpam uns aos outros as suas falhas, suores e cheiros, as suas mentiras e subterfúgios e, acima de tudo, a sua inextirpável auto-obsessão. É isto que nos desconcerta, a maneira como fugiram ao nosso controlo e, de alguma maneira, se tornaram livres de se perdoar uns aos outros por tudo aquilo que não são.

 

E do princípio ao fim, a coisa não passa de uma fantasia auto-induzida. O que o meu pai, ansiando pela amor delas, não vê e não admite que lhe digam é que aquilo que o amor ama é precisamente a representação, pois a representação é a única coisa que o amor conhece. Ou nem sequer tanto. Mostrem-me um par em pleno acto e eu mostro-vos dois espelhos, rosados, lisonjeiramente distorcidos, presos num abraço de incompreensão mútua. Eles amam para poderem ver o seus eus em piruetas maravilhosamente reflectidos nos olhos do amado. É a imortalidade que buscam – sim, aquilo de que gostaríamos de nos livrar, eles almejam, ou pelo menos, desejam a ilusão de imortalidade, a sensação de viver para sempre num instante de paixão. Donde as suas cerimónias de entrega e voracidade. Ágape?... Sim, nesse festim eles comem-se uns aos outros, devorando-se mutuamente. E isso, isso é o que grande Zeus cobiça, os seus pequeninos arroubos manufacturados dos quais ele se vê excluído.

 

John Banville, Os Infinitos.

Edição Asa, tradução de Tânia Ganho.



publicado por José António Abreu às 21:29
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