Este amor, este amor mortal, foram eles que o criaram, algo que nós não planeámos, previmos ou sancionámos. Como é que não haveria de nos fascinar? Demos-lhes aquela irresistível compulsão no baixo-ventre – Eros e Ananké trabalhando de mãos dadas –, só para que eles superassem a sua repulsa pela carne do outro e se unissem de bom grado, mais do que de bom grado, no acto de procriação, já que, uma vez que os criámos, detestámos a ideia de os deixar perecer, sendo eles, no fim de contas, a nossa obra, para o bem e para o mal, ou, como é muitas vezes o caso, para o mal. Mas, olhem!, vejam o que eles fizeram desta trapalhada do esfreganço. É como se alguém tivesse dado a uma criança birrenta umas quantas aparas de madeira e um balde de lama para ela ficar sossegada e, de imediato, ela tivesse erguido uma catedral, com direito a baptistério, campanário, cata-vento e tudo. No recinto desta consagrada casa, oferecem-se uns aos outros refúgio, desculpam uns aos outros as suas falhas, suores e cheiros, as suas mentiras e subterfúgios e, acima de tudo, a sua inextirpável auto-obsessão. É isto que nos desconcerta, a maneira como fugiram ao nosso controlo e, de alguma maneira, se tornaram livres de se perdoar uns aos outros por tudo aquilo que não são.
E do princípio ao fim, a coisa não passa de uma fantasia auto-induzida. O que o meu pai, ansiando pela amor delas, não vê e não admite que lhe digam é que aquilo que o amor ama é precisamente a representação, pois a representação é a única coisa que o amor conhece. Ou nem sequer tanto. Mostrem-me um par em pleno acto e eu mostro-vos dois espelhos, rosados, lisonjeiramente distorcidos, presos num abraço de incompreensão mútua. Eles amam para poderem ver o seus eus em piruetas maravilhosamente reflectidos nos olhos do amado. É a imortalidade que buscam – sim, aquilo de que gostaríamos de nos livrar, eles almejam, ou pelo menos, desejam a ilusão de imortalidade, a sensação de viver para sempre num instante de paixão. Donde as suas cerimónias de entrega e voracidade. Ágape?... Sim, nesse festim eles comem-se uns aos outros, devorando-se mutuamente. E isso, isso é o que grande Zeus cobiça, os seus pequeninos arroubos manufacturados dos quais ele se vê excluído.
John Banville, Os Infinitos.
Edição Asa, tradução de Tânia Ganho.
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