como sobreviver submerso.

Quinta-feira, 16 de Julho de 2009
Agarrado
Tenho dezenas e dezenas de livros por ler. Não. Desculpem-me. Assim não. Não posso cair no eufemismo. Tenho centenas de livros por ler. O Tiago Moreira Ramalho escreveu sobre o assunto há um par de meses. Mas ficou-me a ideia que ele tem uma forma benigna da doença. Escolheu, aliás, o termo bibliófilo para se definir. Eu não o posso fazer. Sou viciado e devo admiti-lo. Olá, o meu nome é jota á á e compro livros compulsivamente. Luto comigo mesmo todos os dias. O pior é que um dia sem comprar livros é simultaneamente um dia em que me sinto bem e em que me sinto mal. No início do ano prometi-me quase não comprar livros em 2009. (O “quase” foi um acto de cobardia mas também uma forma de tornar a promessa minimamente realista.) Há meses obriguei-me a prometer não pôr os pés na Feira do Livro. Na semana passada jurei que não compraria mais livros até ao final do Verão. Quebrei todas as juras pouco tempo depois de as fazer. Por vezes logo no dia seguinte, uma vez creio que no próprio dia. Espero que o castigo por tantas promessas desrespeitadas não seja duro. Prometi sempre não voltar a quebrar outra promessa. É a minha forma de mostrar que me esforço. Quando hoje entrei na Fnac não fazia tenções de comprar livros. Ia apenas deambular. A princípio as coisas correram bem. Peguei em vários livros e consegui voltar a pousá-los. Depois vi Os Detectives Selvagens, de Roberto Bolaño. Lembrei-me de ter lido uma crítica positiva mas a recordação surgiu-me difusa (onde? quando? que pontos eram salientados?). E as críticas são frequentemente irrelevantes neste meu vício. Muitos dos livros que compro, em especial quando são de autores que nunca li, seduzem-me pelo tema ou por um punhado de frases que me agarram como uma tenaz. Na semana passada comprei A Hora do Lobo, de Jiang Rong, sem ter qualquer referência prévia, porque se passa nas estepes da Mongólia Interior e é sobre lobos. Repare-se na primeira frase: Quando Chen Zhen, no seu esconderijo na caverna de neve, olhou através do telescópio, viu o olhar fixo e acerado de um lobo da estepe da Mongólia. Foi tudo o que bastou. As primeiras frases são frequentemente o anzol que me apanha. Há tantos e tantos inícios perfeitos, alguns famosos como o de Anna Karénina, de Tolstói, ou o de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth, outros menos conhecidos como o de O Jardim de Cimento, de Ian McEwan, ou o de Os Homens que Amaram Evelyn Cotton, de Frank Ronan. Os (bons) escritores sabem o que fazem e fazem-no de propósito. Lembro-me de ler, há muitos anos, um artigo em que John Irving (o do Garp e do Owen Meany) explicava o cuidado que punha nas primeiras frases de cada livro que escrevia. Os escritores são uns filhos da mãe sem coração. Estendi A Hora do Lobo à menina da caixa da Fnac com uma expressão que, pelo olhar que ela me deitou, devia ser parecida com dor. Quando ela tentou retirar o livro da minha mão, retive-o um instante, o que a fez hesitar. Mas acabei por largá-lo. Paguei. Saí com o saco a balançar junto à perna, prometendo a mim mesmo não comprar mais livros até ao final do Verão. Hoje não ia comprar livros. Apenas deambular. Queimar um quarto de hora. Peguei no exemplar de Os Detectives Selvagens que se encontrava no topo da pilha. Abri-o.
 
2 de Novembro
Fui cordialmente convidado para fazer parte do realismo visceral. Evidentemente, aceitei. Não houve cerimónia de iniciação. Ainda bem.
 
3 de Novembro
Não sei muito bem em que consiste o realismo visceral. Tenho dezassete anos, chamo-me Juan García Madera, estou no primeiro semestre do curso de direito. Eu não queria estudar direito mas sim letras, porém o meu tio insistiu e afinal acabei por transigir. Sou órfão. Serei advogado.
 

Como resistir a um início assim?

 

            



publicado por José António Abreu às 22:22
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