como sobreviver submerso.

Sábado, 8 de Outubro de 2016
Crianças, adultos e a procura de um casulo que fala sentido

Houve uma época, ali pelo início da década de 1990, em que Ian McEwan era o meu escritor contemporâneo favorito. Depois as coisas alteraram-se um pouco (achei Amesterdão inconsequente e Expiação demasiado proustiano - ou talvez seja mais correcto classificá-lo como demasiado jamesiano - para o seu próprio bem) mas não pude deixar de o incluir entre as hipóteses para esta série. E então apercebi-me de que talvez pudesse fazer uma espécie de Do Princípio ao Fim dentro da obra dele, utilizando alguns temas nela recorrentes. É provável que corra mal mas até isso poderá ser adequado.

 

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Não matei o meu pai, mas às vezes sinto que contribuí para isso.

O Jardim de Cimento (1978). Edição Gradiva (1989). Tradução de Cristina Ferreira de Almeida.

(Na versão original: I did not kill my father, but I sometimes felt I had helped him on his way.)

 

O Jardim de Cimento (primeiro romance de McEwan, depois de dois volumes de contos) relata a história de quatro irmãos que ficam sozinhos em casa após a morte dos pais. O pai propunha-se cimentar o jardim porque, na sequência de um ataque cardíaco, já não conseguia tratar dele e, ainda por cima, era forçado a ouvir constantemente piadas sobre o seu estado de degradação, a maioria provenientes de Jack, o filho de 15 anos, que narra a história. Para além de resolver o problema estético, argumenta o pai, o piso de cimento permitirá reduzir a entrada de lixo na casa. Morre, de segundo ataque cardíaco, enquanto mistura o cimento. Ao mesmo tempo e em vez de estar a ajudá-lo, Jack masturba-se no quarto, pensando na irmã mais velha. É este acto, juntamente com as piadas que fazia sobre o jardim, que levam Jack a considerar ter contribuído para a morte do pai. A situação complica-se quando, algum tempo depois, falece também a mãe, há muito doente. Sem saber como agir, temendo ser separados, os irmãos decidem manter segredo e enterrá-la na cave, tapando-a com o cimento. Nas semanas seguintes, sobrevivendo à custa da pensão que ela recebia, criam um ambiente e uma lógica próprios, nos quais as pulsões sexuais desempenham um papel crucial. O 'lixo' pode afinal não vir de fora.

Muitas pessoas detestam O Jardim de Cimento (leiam-se os comentários negativos na Amazon norte-americana, por exemplo). Entende-se porquê. O humor é negro e o ambiente malsão. Mas, na sua brevidade, o livro expõe gloriosamente a confusão adolescente acerca da definição de regras morais (particularmente de índole sexual) e da procura de um lugar no mundo, bem como o papel fundamental dos pais nesses processos. Entregues a si próprios, aqueles quatro irmãos definem regras próprias, em grande medida distorções das existentes fora de casa. (Há quem considere O Jardim de Cimento uma espécie de O Senhor das Moscas em ambiente familiar e altamente sexual.) A própria relação entre Jack e Julie (a irmã mais velha) não passa afinal da encenação instintiva dos jogos habituais entre adultos, aqui remetida ao ambiente mais restrito possível - o de um grupo de irmãos. Ao permanecerem na casa (e apesar de intrusões do mundo exterior, e de ocasionais excursões ao mundo exterior), eles conseguem manter algum controlo sobre as suas vidas. Estão juntos e em relativa segurança, ainda que as ameaças se acumulem e as hormonas se manifestem. No fundo, para pessoas que já nasceram, a casa dos pais é o local mais parecido que existe com o ventre materno.

 

(O bom senso aconselharia agora que eu aproveitasse a frase anterior para saltar directamente para o último livro de McEwan - ser-me-á impossível conseguir melhor ligação - mas não resisto a fazer algumas paragens suplementares.)

 

Depois de O Jardim de Cimento, McEwan publicou Estranha Sedução (1981). Por várias razões, o título original é melhor: The Comfort of Strangers. De visita a Veneza, um casal é atraído pelo lado misterioso e cosmopolita de outro casal. Estamos perante adultos mas, como no livro anterior, o impulso para criar um núcleo que faça sentido permanece. E os jogos macabros, agora num nível mais perigoso, mais adulto, também.

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A seguir veio A Criança no Tempo (1987). O início tem pouco de memorável (qualquer coisa acerca do trânsito) mas a premissa é a inversão quase perfeita da que gerara O Jardim de Cimento. Um pai perde a filha no supermercado e tem de lidar com as consequências do desaparecimento. O seu casamento desmorona-se, as suas relações profissionais são testadas e a sua própria história é necessariamente reavaliada na sequência de toda a introspecção que ele não consegue deixar de levar a cabo. Ao contrário das crianças de O Jardim de Cimento, ele tem de lidar com o exterior. É um adulto, afinal. E, por sê-lo, deveria conseguir relativizar, colocar os eventos sob perspectiva. Mas, bem vistas as coisas, ninguém alguma vez deixa de ser uma criança – em especial perante acontecimentos que fazem nascer questões de culpa e de justiça. Por outro lado, ninguém alguma vez deixa de se avaliar com os olhos, plenos de expectativa, da criança que foi – o que só pode gerar desapontamento. Em O Jardim de Cimento, sem adultos, sem guias nem passado, as crianças construíam um mundo – deformado, com regras e pulsões malsãs, é certo, mas um mundo ainda assim;  sem a criança, os adultos de A Criança no Tempo são incapazes de manter um mundo já criado. Tudo se altera. Tudo é questionado, incluindo a sua própria capacidade enquanto adultos.

 

N'O Inocente (1990), os jogos dos adultos abrangem a espionagem. Trata-se de um dos poucos livros de McEwan sem crianças mas a personagem principal substitui-as. Virgem, crédulo, transportado para um ambiente estranho (a Berlim do pós-guerra), rodeado por pessoas que parecem muito mais à vontade e saber muito mais do que ele (a experiência permite aos adultos fingir melhor), Leonard Marnham é uma versão crescida do Jack de O Jardim de Cimento.

 

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Desde que perdi os meus num acidente de viação, quando tinha oito anos, passei a trazer debaixo de olho os pais das outras pessoas.

Cães Pretos (1992). Edição Gradiva (1993). Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues.

 

Mais uma vez, a história é sobre orfandade, em sentido real e figurado. O narrador olha para os pais dos outros (perdoe-me Romana Petri o roubo do título de um dos seus livros) porque perdeu os seus. E vai olhar especialmente de perto para os pais da mulher. Ele procurou um sentido na política (marxista convicto, acreditou num mundo melhor, num mundo perfeito, criado pelos humanos mas sem os ‘defeitos’ humanos). A partir de certa altura, ela voltou-se para a religião (o campo por excelência do ideal). Num caso como no outro, o desejo é o de sempre: conferir um sentido à vida, construir um casulo de pessoas, lugares e conceitos que garantam sentido e protecção. Porém, como seria de esperar, os filhos ressentiram-se das obsessões dos pais: Liguei-me pelo casamento a uma família dividida, na qual os filhos, tendo em conta os interesses da sua própria preservação, tinham, até certo ponto, voltado as costas aos pais (p. 23). Os dois temas cruciais em McEwan: como os actos das crianças (ou dos adultos) influenciam os adultos (ou as crianças); a busca, por uns e por outros, de um ambiente de segurança. E, em corolário, como adultos e crianças são afinal duas faces da mesma moeda.

Poderia seguir daqui para a mentira da miúda em Expiação (2001), que nasce de uma visão incompleta (e altamente ficcional) do mundo e da lógica dos adultos, e gera terríveis consequências; para o colapso do dia meticulosamente planeado pelo neurocirurgião de Sábado (2005), que culmina com a invasão da sua residência e a ameaça à sua filha grávida; para a tentativa falhada de construir uma intimidade envolvendo o plano sexual (algo que, no fim de contas, separa as crianças dos adultos) em Na Praia de Chesil (2007); ou ainda para a juíza sem filhos, prestes a ver colapsar o casamento de mais de 30 anos e tendo que decidir da vida ou morte de um rapaz de 17 em The Children Act (A Balada de Adam Henry, 2014). Contudo, isto já vai longo e eu não pretendo escrever uma tese. Avancemos portanto - e finalmente - para o início do último livro de McEwan, publicado há menos de um mês.

 

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E para aqui estou eu, de pernas para o ar dentro de uma mulher. Com os meus braços pacientemente cruzados, à espera, à espera e a perguntar-me dentro de quem estou, para que estou aqui. Fecho os olhos com nostalgia quando me recordo de como em tempos vogava dentro do meu translúcido saco físico, a flutuar como num sonho, na bolha dos meus pensamentos, pelo meu oceano pessoal em cambalhotas em câmara lenta, colidindo docemente com os limites transparentes da minha clausura, a membrana reveladora que, embora as abafasse, vibrava com as confidências dos conspiradores num vil empreendimento. Isso foi durante a minha juventude despreocupada.

Numa Casca de Noz (2016). Edição Gradiva (2016). Tradução de Ana Falcão Bastos.

(O título original - Nutshell - é novamente preferível, por incluir a ideia de súmula.)

 

Poderia ser um truque barato e ineficaz, mas resulta. Numa revisitação de Hamlet (em 2016 assinalam-se os 500 anos da morte de Shakespeare), acompanhamos os solilóquios de um feto dentro do ventre materno, suscitados por aquilo que ouve e pelas imagens que vai construindo de um mundo que nunca viu.  A mãe tem uma relação com o cunhado e, com ele, planeia matar o pai. O nascituro preocupa-se. Ainda no útero mas já ameaçado por actos de adultos – e, em particular, da mãe – , relembra com nostalgia tempos nos quais ainda não tinha consciência do que se passava (isto é, tempos em que, na famosa equação ser ou não ser, ainda estava do lado do não ser). Caso a mãe e o amante concretizem o plano, sairá do útero - o casulo de segurança por excelência - para um mundo que já lhe foi retirado (o pai estará morto, a mãe provavelmente presa). Ainda por cima, é impotente; nada pode fazer acerca do assunto. Excepto uma coisa: nascer. Simultaneamente uma vitória e uma rendição.

 

 

(Este texto faz parte de uma série colectiva sobre inícios e finais de livros, a decorrer no Delito de Opinião.)


publicado por José António Abreu às 10:44
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