como sobreviver submerso.

Sábado, 4 de Julho de 2009
Calem-no mas deixem-no escrever

Alguém devia amordaçar Vasco Pulido Valente e obrigá-lo a comunicar exclusivamente por escrito. E não escrevo isto por desejar o mal de VPV. Pelo contrário: seria para o bem dele. (Ok, admito que também para o nosso). Existem pessoas que provavelmente não terão grandes dotes para a escrita mas que nos encantam com a sua voz ou com as suas capacidades de oratória. Cantores líricos, actores, alguns políticos. Depois há uma grande massa que se desenrasca em ambas as áreas mas não deslumbra em qualquer delas. Eu, provavelmente você. Por fim, existem as que deviam exprimir-se sempre por escrito e nunca falarem com finalidades diferentes que cumprimentar, agradecer, pedir refeições em restaurantes e dizer ao médico onde lhes dói. E não, não estou a condescender porque, no caso de VPV, acho que nem isso devia acontecer: no Gambrinus já lhe conhecem as preferências. Não é que estas pessoas não consigam falar. Com boa vontade, pode dizer-se que conseguem. Mas ler o que escrevem é uma experiência tão mais gratificante que ouvi-los que era preferível fazerem um voto de silêncio.

 
VPV nem falava muito (ou, pelo menos, pouca gente o ouvia). Mas, de há uns meses para cá, tem aqueles tête-à-tête de sexta-feira à noite com Manuela Moura Guedes que são, sejamos francos, tão penosos quanto seria assistir aos esforços de um doente de Parkinson cego e tagarela para tratar dos dentes ao ministro Mário Lino (podem substituir pelo ministro da vossa preferência) sem aplicação de anestesia e com uma broca torta. Por via oral (note-se o raccord), as ideias de VPV surgem confusas e banais, prejudicadas por um discurso trapalhão, uma oratória perra, e até por erros factuais. VPV admite que não se exprime bem oralmente. Fê-lo há anos numa entrevista a Francisco José Viegas, no programa Livro Aberto da RTPN. Mas, sabe-se lá porquê, acedeu àqueles excruciantes exercícios semanais. (Quem é que colocou a Liza Minelli cantando Money makes the world go round, the world go round no meu leitor de MP3?)
 
Enfim. Passando à frente, que isto pretende ser um elogio e talvez ainda não o pareça, há pouco mais de um mês a Alêtheia lançou “Portugal, Ensaios de História e de Política”. O livro demonstra novamente que, quando se trata de escrita, toda a liberdade deve ser dada aos dedinhos de VPV. São ensaios sobre a história portuguesa no período entre as invasões francesas e os tempos do pós-25 de Abril (com um “buraco” na segunda metade do século XIX), todos anteriormente publicados em sítios como O Independente, a mítica revista K ou o jornal Público. Podem ser lidos como relatos históricos mas quem o fizer arrisca-se a ficar desiludido porque está a perder oitenta por cento do gozo. VPV não está tão preocupado em dizer-nos o que aconteceu como em mostrar-nos, num estilo leve e mordaz, porque aconteceu e que não havia hipótese de acontecer de outra forma: a mentalidade vigente, o atávico oportunismo da miséria portuguesa, a inércia dos poderes instalados garantiram quase sempre o resultado. E quando as coisas até correram bem ou, pelo menos, melhor do que se tinha direito a esperar, isso deveu-se quase sempre a intervenção alheia: afinal, os franceses foram escorraçados porque os ingleses tomaram o assunto da nossa defesa em mãos e fizeram algo que, tudo indica, não conseguimos fazer sozinhos: organizaram-nos.
 
Toda a gente já sabe mas nunca é demais realçá-lo: a história portuguesa dos dois últimos séculos é marcada pelo mesmo tipo de questiúnculas pseudo-ideológicas, em que os interesses se sobrepuseram (e continuam a sobrepor) quase sempre à ideologia, com as mesmas tiradas grandiosas e a mesma impotência de soluções. Até nos períodos de despotismo, os compromissos foram abundantes porque eram (são) a única forma de sobrevivência. Afinal, como impor uma República se a 20 km de Lisboa e a 10 km do Porto os republicanos rareavam. A 50 km só se encontravam por acaso? VPV entende todos os intervenientes e explica, com um misto de resignação e bonomia, a lógica inerente a cada decisão. Talvez com uma excepção no que toca à bonomia: Salazar. Que Salazar fosse um intriguista vulgar, um pequeno político e um espírito inculto e medíocre não parece ocorrer a ninguém, acusa. O dinheiro e o poder são sempre injustamente associados à inteligência. E ainda, num trecho entre muitos: No fundo, jamais conseguiu compreender, e menos aceitar, a ressurreição dos velhos princípios do século XIX, que nos anos 30 dera por mortos e enterrados; e julgava os políticos europeus como se eles regessem com a sua autoridade quase absoluta países comparáveis ao Portugalinho obediente e pobre, a que para ele o mundo se reduzia. Nos primeiros tempos, ainda os desculpou. Afinal, em certo sentido, os indianos e os árabes do Norte de África (depois da independência da Argélia) eram «civilizados». Mas os pretos, nunca; como sobejamente lhe provava o irmão do Dr. Nazaré, seu médico analista, que, embora formado na Suiça, depressa regressara à sua tribo e refocilava jubilante entre concubinas. VPV nunca se lhe refere mas fica-se com a ideia de que também não vê com grande credibilidade o Salazar quase cosmopolita e engatatão da série da SIC.
 
Se a lógica da mediocridade e do compromisso imperam, há todavia momentos de relativa surpresa. O que espanta no episódio não é a vertiginosa inconsciência de Couceiro, é a pertinácia, o estoicismo e a fidelidade daqueles que o seguiram. Claro que a ingenuidade, no mundo de VPV e no Portugal dos dois últimos séculos (pelo menos), paga-se quase sempre cara e a 19 de Outubro desistiu e voltou para Espanha. Contudo, em 1975, a realidade ainda conseguiu surpreender: A partir de Julho, a «rua», que antes pertencia à esquerda e à extrema-esquerda, passou para o PS e para a inumerável multidão que o seguia. Este era um fenómeno novo para que a «cultura intelectual» vigente não preparara os «revolucionários». Segundo os manuais, os «moderados», uma excrescência da «burguesia», de resto numérica e politicamente sem significado, ficavam sempre entre a obediência e o exílio. Os manuais em que a esquerda se educara eram taxativos. Em Paris, a «moderação» não marchara em defesa do rei, nem contra Robespierre. Em Moscovo e Petrogrado, emigrara para a Alemanha ou fora vender móveis na rua. Mas, surpreendentemente, em Lisboa e no Porto, andava em manifestações (cada vez maiores), berrando contra a «revolução». Como explicar esta inconcebível extravagância? Se mesmo um pessimista como VPV ainda encontra motivos de surpresa (e, presume-se porque ele é avaro nas frases laudatórias, regozijo), talvez ainda haja esperança para este povo.


publicado por José António Abreu às 18:39
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