A estrada não é larga mas dispõe de bom piso. Num dos lados e em plano superior, tem a companhia de uma auto-estrada. No outro existe uma malha de salinas abandonadas, agora apenas pequenos lagos com águas cinzentas de cuja superfície espreitam tufos de vegetação. Paro o carro na berma. Há pouco espaço disponível e quase metade fica no asfalto. Não é grave: a estrada tem pouco movimento e a recta permite boa visibilidade. Pego na máquina fotográfica e saio. Os veículos na auto-estrada passam tão depressa que se ouve mais a deslocação do ar que o ruído dos motores. Atravesso a estreita tira de asfalto até à berma junto à água. O desnível faz-me hesitar. Quero impedir que a linha de vegetação junto à estrada apareça nas fotos mas, se escorregar, mergulharei, fato, gravata e câmara, nas águas mortiças meio metro mais abaixo. Acabo por não arriscar. Tiro três ou quatro fotos, usando o zoom para variar o enquadramento. Depois ergo a câmara acima da cabeça e, enquadrando às cegas, tiro mais algumas. Uma carrinha de caixa aberta abranda para passar entre mim e o meu carro. Sinto os olhos do condutor nas minhas costas mas resisto à vontade de olhar para trás. Baixo os braços e permito-me então observar a carrinha que se afasta. Caminho ao longo da estrada no mesmo sentido que ela seguiu enquanto verifico as fotos: algumas provocam-me trejeitos de embaraço e apago-as de imediato. A uma vintena de metros do carro tiro mais duas ou três mas já com pouca convicção. Regresso ao carro. Guardo a máquina, coloco o motor em funcionamento e arranco em direcção ao Porto.
Foi há cerca de quatro anos, num fim de tarde com sol e nuvens de trovoada. Lembrei-me recentemente da imagem porque já não é possível repeti-la. O novo acesso ao Porto de Aveiro obrigou à destruição da pequena casa de apoio às salinas, cada vez mais, elas próprias, uma recordação histórica. E o viaduto, suspenso vários metros acima do nível da água, tem – sejamos caridosos – uma fotogenia totalmente diferente. Creio que se pode dizer que o progresso passou por cima deste pequeno charco, como quer passar por cima de outros. O progresso é implacável.
O cão corre até mim. Fico quieto enquanto me cheira os tornozelos. É grande, com traços de Serra da Estrela. Quando ergue a cabeça arrisco uma festa. O pastor grita que ele não morde. Está parado a cerca de vinte metros. Atrás dele, o rebanho espalha-se pelo campo que termina junto à vedação do aeródromo de Seia. Ainda mais atrás, a encosta da Serra.
Finalmente aproveito uma pausa e despeço-me. Afasto-me. Passo pelo cão, que ergue a cabeça mas permanece deitado. Dou mais uns passos e olho para trás. Baixo-me e tiro uma última foto.
Caminho na quase escuridão das arcadas da Ribeira quando vejo um miúdo em contraluz e de costas para mim saltar para uma bola. Falha a intercepção. A bola passa-lhe por cima, cai nas pedras da calçada e rebola até parar contra a parede, meia dúzia de metros à minha frente. Avanço. Com um chuto devolvo-a ao guarda-redes. Ele pontapeia-a para o largo, para outro miúdo que se encontra perto das primeiras mesas. Depois prepara-se para tentar novamente a defesa. Ergo a máquina e tiro um par de fotos enquanto a bola vem pelo ar. Apercebo-me que a velocidade de obturação é demasiado baixa para que fiquem nítidas. Baixo a máquina e lanço novamente a bola para o primeiro miúdo, que voltou a não conseguir defender. Este chuta para o outro, que a pára sem dificuldade. Recua e prepara-se para rematar de novo. Reparo que veste calções num tom de verde parecido com o das cadeiras que se encontram amontoadas junto à parede da direita. Ergo a máquina. Ele hesita. Uma expressão de resolução surge-lhe na face. Grita-me: «Senhor, cuidado com a máquina.» Não me mexo. Ele grita de novo. Gesticulo para que esteja à vontade. A expressão dele endurece. Recua mais um passo e depois avança para a bola e pontapeia-a com força. A bola descreve um arco, passa por cima do guarda-redes cujo salto foi mais uma vez tardio, e vem na minha direcção. Tiro uma única fotografia e baixo a máquina à pressa. A bola cai mesmo à minha frente. Sem dificuldade, paro-a debaixo do pé direito. A expressão do rematador passa a espanto. Eu também estou surpreendido mas tento manter-me impassível. Devolvo a bola pela terceira vez mas agora sigo atrás dela. Não vou arriscar outro chuto. Quando passo pelo miúdo, ele olha-me com respeito. Reprimo a vontade de sorrir e sigo em direcção à beira-rio.
(Mais tarde, admito que provavelmente ele também teve medo de se meter em sarilhos e chutou com menos força do que planeara inicialmente. Mesmo assim foi uma bela recepção.)
«Olhe, tire mas é fotografias à minha casa, para ver se me dão outra.»
Estou em falta. Já passou um mês e ainda não fui lá levar a foto.
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