E a propósito do inferno, antes de chegarmos aqui, à igreja e à cripta: quando é que um acto deste género é lícito e não terrorismo? Aceitamo-lo e glorificamo-lo por ocorrer durante uma guerra e ser cometido pelo lado justo (e neste caso é fácil; quase todos aceitamos o mesmo lado como sendo o justo) ou por Heydrich ser um monstro? Talvez mais importante: quando é que um acto destes vale a pena? Na sequência do atentado, os nazis mataram, torturaram e deportaram centenas de pessoas. Seguindo uma suspeita infundada, arrasaram a aldeia de Lidice, a noroeste de Praga (173 homens entre os quinze e os oitenta e quatro anos foram fuzilados de imediato, 26 foram mortos mais tarde em Praga, 88 crianças foram gaseadas em Chelmno, na Polónia, e 53 mulheres morreram em vários campos de concentração). Todos as pessoas envolvidas na preparação do atentado, ainda que de forma circunstancial, foram mortas (incluindo, evidentemente, os clérigos da igreja de São Cirilo e São Metódio e as familias que esconderam os pára-quedistas). No outro prato da balança, o atentado abanou de facto a confiança do Terceiro Reich, mostrou que a ocupação da República Checa estava longe de ser pacífica e, mais importante, o massacre de Lidice provocou reacções de horror a nível internacional, expondo o regime nazi como de facto era: brutal. Ainda assim: valeu a pena?
É esta cripta. Acanhada, escura, fria, bruta. Mas não morrem aqui os sete. Kubiš, Bublík e Opálka morrem lá em cima, na nave, depois de resistirem a partir da galeria até às sete da manhã. Só depois os nazis se apercebem da existência dos restantes. Gabčik, Valčik, Hruby e Švarc aguentam cinco horas, aqui em baixo. Os nazis não conseguem descer (os soldados que, cumprindo ordens, procuram fazê-lo são recebidos com tiros nas pernas) e revelam-se estranhamente ineficazes na resolução do problema. Resolvem inundar a cripta através da seteira que dá para a rua e, ao mesmo tempo, lançar granadas lacrimogénias cá para dentro. Mas os métodos têm efeitos contraproducentes (a água no chão diminui o efeito das granadas permitindo que seja possível atirá-las de volta para a rua) e os sitiados conseguem, com uma escada de mão, ir empurrando a mangueira da água. Entretanto, vão escavando na parede, tentando atingir uma qualquer conduta subterrânea que passe sob a rua Resslova (a seteira, ou respiradouro, ou o que lhe quiserem chamar, está aqui, a uns dois metros e meio de altura, e o buraco na parede também, quase por baixo, desviado para a direita). Finalmente, por volta do meio dia, tudo acaba: na nave da igreja, os nazis rebentam uma laje e abrem outro acesso à cripta. Gabčik, Valčik, Hruby e Švarc percebem que o jogo acabou e suicidam-se.
É sábado, 2 de Junho, e apercebo-me de repente que foi há setenta anos. Há setenta anos, Heydrich estava a morrer no hospital e homens condenados ocupavam esta cripta. Sinto-me indisposto, aqui dentro, como turista, máquina fotográfica na mão. Mas provavelmente é a única reacção adequada.
(Os retratos são de Kubiš e Gabčik, tal como aparecem nos painéis informativos existentes na igreja. As fotos da cripta são actuais, tiradas por mim. Os dados foram recolhidos do folheto oficial, comprado no local, do livro HHhH, de Laurent Binet, e da internet.)
Há poucos anos, pouco tempo antes da sua morte, o grande germanista e estudioso de Kafka, Eduard Goldstücker, descreveu-me como ele e outros fiéis comunistas em Praga foram cercados em Dezembro de 1951 no início de uma nova onda de «processos de Moscovo» estalinistas. Quando ele pediu para saber por que razão tinha sido preso, a resposta veio com um sorriso irónico: «Isso é o que você vai ter de nos dizer.»
John Banville, Imagens de Praga. Edições Asa (2005), tradução de Teresa Casal.
O século XX não foi fácil para os checos e para os seus «primos» eslovacos. Antes da Primeira Guerra Mundial, o país nem sequer existia. Depois, a Checoslováquia entrou no que Kundera chamou, de modo quiçá um tudo-nada forçado, «tripla repetição do número vinte». Ganha a independência em 1918, perdeu-a em 1938, quando os líderes dos países vencedores da Guerra se assustaram com as ameaças de Hitler. Em 1948, o país aceitou o comunismo para vinte anos depois perceber que não estava autorizado a introduzir-lhe mudanças – muito menos a abandoná-lo. O poder imposto pelos tanques soviéticos instalou-se em força em 1969 e apenas caiu em 1989. Três vezes vinte. Pelo meio, ainda existem os dez anos que vão de 1938 a 1948. Os anos da ocupação nazi, da perseguição aos judeus, do Reichsprotektor Reinhard Heydrich, uma figura que me fascina tanto como o proverbial olhar do réptil e a que talvez ainda volte – mas aconselho desde já a leitura de HHhH, de Laurent Binet, que a Sextante publicou há pouco mais de um ano. As contas são fáceis de fazer: os checos passaram três quartos do século em guerra ou numa paz regida pelo medo. Medo do próprio governo, medo de governos vizinhos, medo de proferirem uma palavra imprudente ou mal interpretada. Talvez nós, portugueses, devêssemos pensar nisto quanto justificamos pechas nacionais com os quarenta e oito anos de Salazar.
Mas não é minha intenção comparar ditaduras nem estados de alma colectivos. Prefiro centrar-me no génio de Kafka. Permitam-me só mais algumas datas: Kafka morreu em 1924 mas O Processo, escrito cerca de dez anos antes, foi publicado pela primeira vez apenas em 1925. Kafka era judeu e falante de alemão, o que, já na época de início da Primeira Grande Guerra, não constituía combinação fácil. Mas Hitler e Estaline, os campos de concentração e o gulag, a Gestapo e o KGB (e a Státní Bezpečnost, a polícia secreta checa dos tempos comunistas), tudo ainda fazia parte do futuro. Porém, Kafka adivinhava. Ainda que se diga que ele achava os seus enredos mais divertidos do que assustadores ou proféticos, o universo de Kafka é o universo do totalitarismo e, mais especificamente, do totalitarismo moderno. Tão moderno, de facto, que, talvez ironicamente para quem abominava a nascente psicanálise (Kafka apreciava a loucura e detestava que se pretendesse curá-la), é, acima de tudo, um totalitarismo psicológico. Kundera outra vez, em Os Testamentos Traídos (Edições ASA, 1994, tradução de Miguel Serras Pereira): «Se lermos assim O Processo, ficaremos, desde o início, intrigados com a estranha reacção de K. à acusação: sem nada ter feito de mal (ou sem saber o que de mal fez), K. começa logo a comportar-se como se fosse culpado. Tornaram-no culpado. Culpabilizaram-no.» E Kundera mostra como K. segue o processo psicológico típico de alguém que sente estar a agir como culpado sem o ser. Um processo interior, por contraponto ao outro, exterior, que dá nome ao livro, e que tem cinco estádios: Luta vã pela dignidade perdida, Prova de força, Socialização do processo, Autocrítica, Identificação da vítima com o seu carrasco. Na literatura, antes de Kafka, um inocente podia ceder e confessar crimes que não cometera, podia ser formalmente culpado mas, perante si mesmo, mantinha-se inocente. Em Kafka, a culpa é imposta do exterior e é aceite. K., a personagem de O Processo, irá (no estádio 4, o da autocrítica) examinar a sua vida à procura do momento em que se tornou culpado. Já não duvida que o é. Num regime totalitário, o acusador não precisa de conhecer a culpa do acusado antecipadamente. Precisa de, em conjunto com o acusado, a descobrir (releiam, por favor, o excerto de Banville sobre a réplica do interrogador comunista em 1951) pois sabe que toda a gente é culpada de alguma coisa – quanto mais não seja, de um pensamento. E, se até a própria culpa pode vir a ser aceite como real, quão fácil é aceitar a culpa alheia? O poder num regime totalitário vive de pessoas que aceitam a culpa alheia. Se foi preso, alguma coisa terá feito. Reacção apenas humana; reacção decididamente kafkiana. O corolário, como se viu (como Kafka viu), é se fui preso, alguma coisa terei feito. (Em 1984, de Orwell – a quintessência do livro sobre totalitarismo, mas convenhamos que o inglês já assistira a muito no quarto de século que decorrera desde a morte de Kafka – há uma personagem que aceita prisão e castigo e ainda se recrimina por, alegadamente, ter criticado o Grande Irmão enquanto dormia.)
Em Portugal, dizemos frequentemente que, ao ler-se Eça, pode ver-se o país actual. É verdade. Os bons escritores são intemporais – e globais. Mas, ainda assim, Eça descreveu a época em que viveu. Kafka descreveu os cinquenta anos que se seguiram à sua morte. E esperemos que não outros tantos, no nosso futuro.
Enquanto procurava informações sobre a praça de Portugalete, em Valladolid, dei com a vila de Portugalete, situada perto de Bilbao, e fiquei a saber que o apelido Salazar também marcou a sua história. Coincidências cósmicas, uma vez que que a origem do nome da vila nada parece ter a ver com Portugal. (A hipótese mais credível aponta para uma junção do romano Portus com o termo em euskera Ugalete, sendo que o resultado é mais um pleonasmo translinguístico, visto que ambas as palavras significam "porto").
Nota competamente acessória, irrelevante e, como diriam os Gato Fedorento, parva: um dos antepassados dos Salazar que se instalaram em Portugalete era conhecido por "Braço de Ferro" e teve 120 filhos; pergunto-me se foi nele que a SIC se inspirou para o Salazar firme mas engatatão da mini-série televisiva.
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