Sem ilusões de que o atraso seja de algum modo fashionable, ando a ver The Wire (vou na quinta e última série de episódios e, sim, trata-se provavavelmente da melhor série televisiva de todos os tempos*). No início da terceira temporada, a polícia não consegue obter resultados das escutas porque, para além de trocarem de telemóvel com regularidade, os traficantes de droga, em especial nos níveis médios e elevados da organização, são extremamente cuidadosos acerca do que dizem ao telefone. Numa tentativa de contornar o problema, a polícia arranja forma de prender uma chefia intermédia, na esperança de ver promovido ao seu posto um familiar de um tipo importante, com tendência para falar demais. Quando o plano é apresentado, um dos polícias pergunta: «Mas porque hão-de eles promover um incompetente?» A resposta é: «Porque não? Nós fazemo-lo todos os dias.»
O plano acaba por não dar certo porque os traficantes são afinal mais espertos do que a hierarquia da policia (ou das muitas outras organizações onde a cunha vence o mérito) e não promovem o idiota. Mas, para mim, este nem é o ponto mais curioso. O ponto mais curioso é eu contar isto à frente de chefias e elas esboçarem trejeitos de compreensão e rirem-se com um prazer que parece genuíno.
* O início do primeiro episódio, para quem nunca tiver visto (ou, tendo visto, quiser relembrar):
É a pessoa que tratou das minudências de um despedimento colectivo. No final do processo viu-se incluída no grupo de despedidos. Ficou surpreendida. Não devia. Qualquer empresa de média dimensão (nas pequenas nem se conhece o conceito de gestão de recursos humanos enquanto nas grandes o ambiente está de tal modo impessoal que ninguém conhece realmente ninguém) tem interesse em evitar que o rosto de um despedimento colectivo permaneça nos quadros. Trata-se de um elemento em quem os restantes trabalhadores jamais voltarão a confiar. Despedi-lo permite aos verdadeiros responsáveis arranjar alguém para quem medo e raiva podem ser canalizados e marcar um ponto de viragem na empresa. É como se dissessem aos que ficam que também acharam mal o que se passou e garantissem que não voltará a acontecer. E quem fica esforça-se por acreditar porque precisamos sempre de acreditar em alguma coisa, por muito ilógica que seja.
Ingenuidade excessiva é estupidez e eu tenho dificuldade em sentir empatia por esta pessoa. Especialmente quando sei que tratou do assunto com um entusiasmo raiando a insensibilidade. Acreditando genuinamente estar a fazer o melhor para a empresa. Talvez estivesse. Tal como quem a despediu.
O nosso Primeiro-Ministro gosta de visitar países liderados por gente «amiga»: Líbia, Angola e Venezuela, por exemplo. E gosta também de arranjar negócios por lá para umas quantas empresas portuguesas que tenham revelado merecê-lo. O gesto é de utilidade indiscutível para elas: afinal, nos países capitalistas e liberais é necessário ser melhor do que a concorrência; naqueles, tudo se revela fácil depois dos líderes, cultores dum mais ou menos doce autoritarismo (por que diabos Sócrates se entenderá tão bem com eles?), estarem convencidos. Ajudando a evitar que as empresas nacionais tenham de exportar para países capitalistas, Sócrates alivia a pressão sobre elas e, ao mesmo tempo, expõe o carácter selvático da economia de mercado. Não percebo como podem acusá-lo de ser pouco socialista.
«Este Natal vamos dar coisas a pessoas necessitadas», disse o administrador. «E no futuro podemos alargar a medida a outras épocas do ano.»
«Ah, brilhante. Brilhante.»
Primeiro as pessoas complicadas atraem, depois assustam. Numa relação laboral, poucos chefes gostam de subordinados exigentes e vocais, mesmo quando produzem excelente trabalho. Podem tê-los contratado porque eram os mais inteligentes, mais autónomos e mais inovadores mas, sempre que têm oportunidade, avisam-nos de que não apreciam o modo como apresentam as ideias e a crítica lhes sai tão fácil. Quando os subordinados deixam finalmente de manifestar inconformismo, respiram de alívio e orgulho por terem conseguido criar mais um colaborador de confiança. Mas (a vida é lixada; há sempre um mas), em simultâneo, estranham que a qualidade do trabalho pareça ter diminuído. Alguns chefes (os mais inteligentes) desconfiam ter algo a ver com o assunto. Quase todos, percebendo-o ou não, preferem a paz podre. Os longos silêncios. Os sorrisos falsos. As declarações de circunstância.
Quem diz relação laboral diz relação sentimental. Queremos quase sempre moldar os outros à imagem que nos é mais confortável (com frequência – mas nem sempre – à nossa). Mas a noção de conforto raramente é partilhada e, para mais, o conforto é traiçoeiro: torna-se chato. (É quase sempre uma rotina, mesmo quando inclui actos à primeira vista muito excitantes.) Acabamos a estranhar a falta de chama. Ou, se tivermos sorte, a ruptura.
Os chefes gostam de gráficos. (Também gostam de tabelas mas gostam mais de gráficos.) A realidade só é real quando expressa em gráfico. Não vale a pena avisar um chefe de algo. Enquanto um gráfico não lhe transmitir a informação, ele não acreditará ou, pelo menos, nada fará. E quando o gráfico lhe mostrar que tem de agir, ele fá-lo-á porque o gráfico não lhe parece bem. Não tem a curva certa. Na verdade, a realidade por trás da curva é quase irrelevante. Por exemplo, quebras nas vendas são chatas não por gerarem menos receitas mas por inverterem a curva ideal que – aprendem os chefes nas melhores escolas de gestão ou por osmose logo que assumem cargos de chefia – os gráficos de vendas devem ter. Alguns, e não tão poucos assim, sentem certamente uma enorme vontade de pedir aos subordinados que lhes invertam as curvas desagradáveis de certos gráficos, após o que tudo ficaria bem outra vez. Quem não é chefe e tiver que escolher entre fazer algo importante para a empresa ou um gráfico para o chefe, não deve hesitar porque ele nunca terá dúvidas acerca das prioridades: o gráfico terá sempre precedência. Nas empresas modernas, os gráficos são a coisa mais bonita que existe.
(Gráfico retirado daqui. E eu gosto mais de laranjas.)
Os suicídios na France Telecom colocam a nu a evidência: na maior parte das empresas de média e grande dimensão o ambiente é hoje frio e agressivo. O orgulho de pertencer à organização desvaneceu-se (ou, para ser mais exacto, foi destruído). Quase ninguém «veste a camisola». Os gestores actuais, que ainda fazem discursos apelando a vários «espíritos» (de grupo, de sacrifício, de luta), não percebem o óbvio: são eles os grandes responsáveis pela situação. Têm sido eles a desprezar os recursos humanos das empresas que lideram, pressionando-os para além do admissível, tratando-os como peças dispensáveis, insultando-os com frequência, antes de voltarem aos tais discursos de circunstância em que tudo soa idílico mas nos quais ninguém acredita. É, de resto, irónico que eles falem, do alto das suas cátedras feitas de cintilante teoria, de «fidelizar clientes», de levá-los a escolher por factores que não o preço, de «criar relações de parceria e confiança». Por que esperam dos clientes aquilo que eles próprios não estão dispostos a dar?
Muitas empresas actuais não são lideradas por gestores. São lideradas por meninos (independentemente da sua idade real) mimados que aprenderam a viver no INSEAD, na McKinsey ou nos bastidores da política mas estão a conseguir moldar a sociedade. E – última ironia – que, se se excluírem os tais discursos, parecem cada vez mais apenas «patrões».
A reunião estava a terminar. O administrador apresentara em detalhe o plano de reestruturação proposto pela empresa de consultoria. Calou-se finalmente e perguntou se alguém desejava fazer comentários. Por momentos, pareceu que ninguém iria falar. Então, o director que falara antes disse: «Se vamos descentralizar algumas operações e a maioria dos processos de decisão, depois de termos feito o oposto há três anos, não seria mais lógico aguentarmos dois ou três anos e evitarmos os custos da centralização que teremos de fazer nessa altura?»
Todos os directores riram abertamente.
«Os consultores recomendam a descentralização de operações», disse o administrador.
O administrador fuzilou-o com o olhar. Disse, em tom peremptório: «Há diferenças.» Calou-se. Caiu um silêncio que ameaçou prolongar-se. O administrador acrescentou: «Estamos ou não a reagir cada vez mais depressa?»
«Os consultores precisam de mais dados», disse o administrador.
O administrador estava excepcionalmente bem disposto e limitou-se a suspirar. «Não seja assim. Não os contratámos para que fizessem o nosso trabalho. Há coisas que devemos ser nós a fazer. Porque a empresa é nossa, meu caro. Nunca esqueça isso. Nós é que somos importantes. Eles apenas nos devem dizer o que devemos fazer depois de nós lhes dizermos o que estamos a fazer. Nada mais.»
Em muitas grandes empresas as únicas pessoas indispensáveis são administradores e directores. A presença de todas as outras é um grave problema que administradores e directores se esforçam afincadamente por resolver. É também o problema que os torna indispensáveis.
O i de hoje informava-nos* que analistas do banco de investimento Morgan Stanley na Grã-Bretanha pediram a Matthew Robson, um estagiário de 15 anos, para elaborar um relatório sobre a relação dos adolescentes com os media e que, ao recebê-lo, ficaram tão impressionados que decidiram publicá-lo.
Ao acabar de ler a notícia, eu pensava em duas coisas. Primeiro, na proposta de Miguel Portas durante a campanha para as eleições europeias: está visto que, com jovens como estes, baixar a idade de voto para os dezasseis anos é um acto de sensatez e justiça. Depois, e mais importante, que esta história nos permite confirmar a noção de que gestores e analistas financeiros são absolutamente incapazes de ver a realidade a menos que esta lhes seja colocada à frente num relatório. E que depois adoram mostrar no-la para que possamos perceber as fantásticas descobertas de que são capazes.
* A notícia está online numa versão mais curta do que a que foi publicada em papel.
«Os consultores precisam de dados», disse o director comercial.
«Envie tudo outra vez numa ordem diferente e tão confusa quanto possível.»
Há uns anos, no Expresso da Meia Noite da SIC Notícias, o presidente da Novabase (creio) afirmou ser política da empresa contratar pessoas inteligentes e dinâmicas, sendo que tinha perfeita consciência de que estas são exigentes e colocam mais problemas à gestão. Não sei se era (ou é) verdade. Sei que, na esmagadora maioria das empresas portuguesas, ser-se inteligente (logo, exigente e sedento de evolução*) é a melhor forma de garantir o fracasso profissional. Não é sequer difícil perceber porquê: os chefes destes trabalhadores, eventualmente dinâmicos e esperançosos aquando do início de carreira, acomodaram-se e funcionam agora by the book (embora muitos não o admitam). Qualquer sinal de inovação e exigência é uma ameaça. Por essa razão é tão frequente ver departamentos (no sector público mas também no privado) onde as estrelas são os yes-men e as yes-women (muitas vezes admitidos com cunhas, que sabem não precisar de trabalhar e que, por mais quotas que se estabeleçam, terão sempre uma excelente nota na avaliação de desempenho) mas quem trabalha são as cavalgaduras que quando entraram fizeram um esforço para mudar o status quo e rapidamente se queimaram, continuando no entanto a ser indispensáveis porque alguém tem que assegurar o serviço.
E, verdadeiramente, não há muito que se possa fazer a não ser talvez começar instituições novas, com pessoas novas. O que equivale a dizer um país novo.
*Evolução ≠ promoção.
O administrador disse: «As coisas estão a piorar. É preciso reavaliar a situação e reduzir custos. Cortar gastos supérfluos e gastar dinheiro apenas no que é absolutamente essencial. Não há alternativa. Reduzir, reduzir, reduzir, meus senhores.»
Todos os directores olharam fixamente para os blocos de papel.
«Informação completa é essencial nestes tempos de crise», disse o administrador. «Quero relatórios diários.»
«Informação completa é essencial nestes tempos de crise. Quero relatórios duas vezes por dia.»
Detesto o ambiente asfixiante e truculento do futebol nacional. Lamento que quase não se fale de outros desportos, com excepção de momentos improváveis em que atletas de outras modalidades, contra todas as expectativas, conseguem resultados assinaláveis. Por não gostar do tema (não é o mesmo que não gostar do jogo) ainda não o abordara neste blogue. Mas esta notícia leva-me a fazê-lo. As SADs dos três grandes - Benfica, Sporting, Porto, pela ordem que preferirem - estão numa situação financeira assustadora. A causa é a de muitos problemas do país (e do mundo): vida acima das possibilidades. Os causadores são também portugueses típicos: fala-baratos, megalómanos, pouco cultos. As semelhanças entre o típico presidente de clube de futebol - de âmbito nacional ou local, com poucas excepções, entre as quais talvez o Sporting mas apenas nos últimos anos -, o autarca característico ou o empresário tradicional são flagrantes; há, aliás, muitos casos em que pessoas foram as três coisas em pouco tempo. Os adeptos são iguais. Como na política, apoiam quem lhes promete os melhores resultados a curto prazo. A exequibilidade é secundária. Perante este cenário não há solução. A correcta seria a falência ou uma gestão financeira draconiana, que colocaria inevitavelmente em risco os sucessos desportivos. Duvido que haja coragem. Desgraçadamente, o futebol é a única coisa que importa neste país. Num caso-limite, os políticos não terão coragem para assumir decisões pouco populares. Os três grandes não são o Boavista. E, nesta questão, qualquer um dos três verá com bons olhos a ajuda pública a um rival por garantir que também a terá. Não me surpreenderia que, de forma clara ou encapotada, acabássemos todos a pagar os luxos desta gente. A sorte pode ser que, como entretanto o país também vai ficando cada vez mais endividado, quando a crise estalar a sério no futebol já não exista dinheiro nem meios de financiamento para acudir aos clubes.
O administrador encarou o director comercial. «Os resultados estão a baixar.»
«Hmmm, talvez. Mas podemos – aliás, é a sua missão – obrigar o nosso pessoal a vender.»
O administrador estava sozinho no gabinete examinando folhas com gráficos que mostravam a evolução dos resultados da empresa. As coisas não andavam bem. Passado algum tempo levantou-se e foi até à casa de banho privativa. Olhou-se no espelho. Compôs o nó da gravata. Murmurou: «Esta empresa iria ao fundo sem mim.»
O director de recursos humanos pensou no administrador por um instante e depois concentrou-se no homem sentado do lado oposto da secretária. Como o director, estava na casa dos cinquenta. «Diga-me», pediu o director de recursos humanos, «o que é que o torna indispensável?»
E despediu-o.
«Temos pessoal a mais», disse o administrador.
Resposta de um empresário da construção civil cuja empresa trabalha bastante para uma Câmara Municipal, a uma proposta de fornecimento de um serviço que implicava deixar de fora uma determinada entidade intermediária:
«Lamento. É mais barata mas ficava-nos mais cara.»
O director de recursos humanos disse: «A chefe da Divisão D pediu a demissão.»
O administrador disse: «E então?»
«Temos o novo projecto a começar. Pode ser complicado.»
«Temos que tirar partido a fundo dele - dela - enquanto ainda cá estiver. Vamos aguentá-la tanto tempo quanto a lei nos permitir fazê-lo.»
«A motivação não vai ser a mesma.»
«Ora! Se a motivação fosse realmente importante, esta empresa já teria ido à falência.»
Este artigo da New Yorker foca um ponto válido (não particularmente original) mas voltado para a relação das empresas com o exterior durante épocas de crise. Há outra área que me parece oportuno abordar: em momentos de crise, as empresas em que existe uma identidade colectiva, um espírito de grupo, estão melhor preparadas para resistir. As empresas em que ninguém se sente parte de uma entidade com objectivos comuns; em que os níveis mais baixos da hierarquia não acreditam que os níveis superiores partilham as suas preocupações mas que os vêem apenas como mais um custo, a eliminar tão cedo quanto possível; em que a noção de mérito não está verdadeiramente implantada; em que se substituem benefícios por mais e mais pressão; essas empresas terão piores resultados que aquelas que conseguirem manter (porque é conveniente que já exista antes do período de crise) um espírito de grupo – de missão, mesmo. E isto pode ser conseguido reduzindo custos – desde que de forma transversal e transparente. Infelizmente, poucos gestores o percebem verdadeiramente. E a actual leva de gestores de topo, com os seus brilhantes currículos com passagens pelo INSEAD ou por consultoras de prestígio (entidades que lhes ensinaram quase tudo aquilo de que necessitaram para nos mergulhar na crise*) mas parca experiência de terreno (e de vida), é, com as excepções que sempre existem, das piores de sempre (como, aliás, também o é a actual leva de políticos, o que cria uma conjugação explosiva).
*Acredito que parte das capacidades seja inata.
«O chefe da secção D tem uma oferta de emprego», disse o director de recursos humanos.
O administrador não levantou os olhos do papel que estava a ler. «Deixe-o ir.»
«Na realidade, é uma mulher.»
A informação despertou a atenção do administrador. «A sério? Deixe-a ir.»
«Precisamos dela.»
«Arranjamos outra pessoa. Um homem. As mulheres faltam demasiado.»
«Vai-nos ficar mais caro.»
«Não interessa. É uma questão de princípio.»
«Mas ela é boa. E já tem experiência. Além disso, o pessoal gosta dela.» O director de recursos humanos hesitou. Depois acrescentou: «Nós prometemos-lhe um bom aumento no ano passado e não cumprimos o acordo.»
«Os tempos estão difíceis para toda a gente.»
«Mas acabou de dizer que não importa termos que pagar mais ao substituto dela...»
O estado de espírito do administrador mudou de aborrecimento para exasperação. «Já chega. Pessoas ingratas não têm lugar nesta empresa. Deixe-a ir.»
O director de recursos humanos não disse mais nada.
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