O calor não ajuda, os magotes de outros turistas também não. Na Piazza della Signoria sou incapaz de visualizar Botticelli queimando as suas obras «pagãs» durante o período de Savonarola (apesar de ter lido existirem dúvidas quanto a ele o ter efectivamente feito, nos Uffizi, diante d’O Nascimento de Vénus e d’A Primavera – pinturas mais escuras e baças do que esperava, talvez porque nos vamos habituando ao brilho excessivo dos ecrãs de computador – dou graças por já terem saído das mãos dele nessa época). No baptistério, não consigo imaginar a cena em que, n’A Divina Comédia (Inferno, Canto XIX), Dante relata como salvou uma criança de morrer afogada numa pia baptismal. Na Ponte Vecchio, pejada de ourivesarias (e, embora sejam hoje lojas de aspecto cem por cento turístico, a existência de ourivesarias neste local não constitui uma adulteração do passado, pelo menos desde que em 1593 os talhantes, ferreiros e curtidores que o ocupavam foram expulsos por causa do mau cheiro), páro, obrigando pessoas com mapas e máquinas fotográficas a desviarem-se, e ergo os olhos para o corredor Vasariano mas também não me é fácil imaginar os membros da família Medici usando-o para evitar o contacto com a população (ainda que – garanto – os entenda melhor neste instante do que alguma vez no passado). É incrível estar no epicentro do Renascimento (e não só, que Giotto, Dante, Petrarca, Boccaccio, Donatello e muitos outros lhe são anteriores) mas torna-se impossível imaginar a realidade de há quinhentos anos. Diabos, torna-se impossível imaginar Hannibal Lecter passeando por estas ruas sem cortar a artéria femural de vinte ou trinta pessoas em cada trajecto. Lamento, Thomas Harris, mas afinal a trepanação não é o único ponto de Hannibal a que falta verosimilhança.
E esta não é a única impossibilidade: também é impossível abarcar tudo. Há demasiada informação. Demasiados edifícios relevantes a visitar, demasiados nomes imortais a recordar, demasiadas pinturas e estátuas a ver, demasiadas intrigas e traições a estudar. O problema é antigo, claro. Como assimilar a História de um local? Como sentir a grandeza de um quadro ou de uma estátua? E de dezenas? Fica quase sempre uma sensação de incapacidade, de que devia sentir-se mais. Talvez a forma correcta de abordar um local seja sem expectativas, com a cabeça vazia. Não ter antes lido Florença, Um Caso Delicado (Asa, 2004, tradução de Teresa Casal), onde David Leavitt escreveu: «A promessa de um destino, tendendo por um lado para o erótico e, por outro, para o artístico, parece ter estado sempre associada a Florença na imaginação do estrangeiro, atraindo-o para a cidade não só para que ele possa ver, mas também para que ele possa ser ou tornar-se algo mais do que é. Ou talvez fosse mais exacto dizer-se que ele espera recuperar uma qualidade que lhe é endémica mas cuja expressão foi inibida pelo seu ambiente de origem.» Mas eu li. E por isso caminho pela cidade e percebo que estou a falhar. Que não pareço conseguir apreciar devidamente o que vejo e que, em consequência disso, sou incapaz de encontrar a tal qualidade que me seria endémica. Pergunto-me se a culpa será exclusivamente minha ou se a devo partilhar com os milhares de outros turistas. Destruiremos mutuamente a hipótese de atingir a plenitude? Mas então penso que Leavitt também classificou Florença como a cidade dos suicidas (e dos homossexuais) e que a propensão para o suicídio se pode dever precisamente ao facto de, com ou sem turistas, Florença mostrar ao visitante que este dificilmente estará à altura do desafio que lhe coloca. Certos locais – como certas pessoas – atraem mas expõem insuficiências. Magnífica, Florença consegue ser uma cidade cruel.
(Apesar de poder confirmar a crueldade, retiro algum consolo do olhar de Botticelli em A Adoração dos Magos. Na extremidade direita da tela, junto de elementos da família Medici passando por reis magos, Botticelli examina os que lhe vieram admirar o génio – quem disse que o pós-modernismo é uma coisa recente? – com uma mistura de enfado e irritação. Apetece-me dizer-lhe que, pelo menos a ele, aqui, o vejo e compreendo.)
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