No final da década de oitenta e início da de noventa, a Feira do Livro de Coimbra era uma coisa relativamente pequena, organizada na Praça da República. Mais relevante para o que se segue, à época eu era forçado a contar os escudos com uma atenção que nem Scrooge nem o Tio Patinhas desdenhariam: todos os que não iam para comida e outras despesas correntes, tinham de ser divididos entre livros, filmes e discos (é verdade, tirando uma ou outra cassete gravada a partir de discos alheios – ah, a saudosa TDK SA –, a música pagava-se). Assim sendo, creio nunca ter comprado mais do que dois ou três livros numa Feira do Livro de Coimbra.
Em Março de 1996 vim para o Porto. E em Maio estava em Lisboa, numa formação de várias semanas. A Feira do Livro foi no Terreiro do Paço e eu, passe o trocadilho, passei-me. Fui lá quase todas as tardes, maravilhado com tantos expositores, tantos livros, tantas pechinchas. Espantei Mário de Carvalho, em pleno rescaldo do sucesso de Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde e Era Bom que Trocássemos umas Ideias sobre o Assunto, quando, ao estender-lhe para rubricar um exemplar de A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho, lhe coloquei a inteligentíssima pergunta: «É por uma estratégia anti-marketing que escolhe sempre títulos tão compridos para os seus livros?» (Ele tartamudeou que não, que até já tinha escrito um chamado Os Alferes, que é dos títulos mais curtos que se podem arranjar, mas decorrida meia hora ainda se notava que ficara a pensar no assunto.) Fui comprando livros (as pechinchas, caramba) e no final da semana enfrentava um problema logístico: vinte e três livros para transportar no Alfa de Lisboa para o Porto e apenas uma pequena mala, já quase totalmente preenchida com roupa suja, onde o fazer. Foi uma obra de engenharia de precisão de que ainda me orgulho, seleccionar os livros que viajariam na mala, em função do tamanho, peso e potencial para resistirem a danos. Estou até convencido de que é graças a esse esforço – e a um outro de que talvez um dia ainda aqui fale –, realizado naquele acanhado quarto de hotel lisboeta – ouço dizer que há quem realize outro tipo de esforços nos quartos de hotel mas a mim calha-me sempre o de enfiar objectos em malas –, que sou tão bom a empilhar louça num escorredor. E depois lá fui até Santa Apolónia arrastando uma mala estupidamente gorda e pesada e procurando evitar que os três sacos plásticos em que me vira forçado a transportar os restantes livros me fugissem das mãos ou embatessem com demasiada força nas malas das outras pessoas (ou nas próprias pessoas mas nas próprias pessoas é menos grave porque, tirando um ou outro caso de ossos especialmente salientes, o corpo humano possui uma capacidade de amortecimento superior à das malas). Não foi fácil mas tive imenso cuidado e todos os livros chegaram incólumes a casa. Um par de semanas mais tarde realizou-se a Feira do Livro do Porto.
Já não ia à Feira do Livro de Lisboa desde a década de noventa. Morando no Porto, suponho não ser de estranhar. Mas a lembrança de que, na última vez, depois de pedir a Mário de Carvalho (tenho que escrever qualquer coisa sobre A Arte de Morrer Longe, que li na viagem de comboio para cá) para me autografar um livro, lhe perguntei por que diabo gostava tanto de títulos super-compridos, talvez tenha algo a ver com o assunto. (Carvalho ficou apenas um pouco menos perplexo do que se eu tivesse tentado saber por que carga de água usa letras nos seus livros, e respondeu-me que nunca pensara no assunto mas que tinha livros com títulos curtos. Depois de matutar uns segundos, lembrou-se de Os Alferes. Eu disse «Ah, pois, é verdade», agradeci, e escapuli-me quase a correr.) Desta vez, porém, saí da Feira muito satisfeito. Não só não fiz perguntas estúpidas a escritores (também não vi nenhum), como consegui não comprar qualquer livro. É a idade adulta a chegar finalmente.
Independentemente dos resultados comerciais (desconheço se já existe um balanço dos primeiros dias), o regresso (ou, para mim como para muitos outros com menos de 50 anos, a passagem) da Feira do Livro do Porto para a Avenida da Liberdade é positiva. Evita-se aquela horrível tenda, quente e cheirando intensamente a formaldeído (das bancas em aglomerado de madeira), que era anualmente anexada ao pavilhão Rosa Mota e ganha-se em cenário, arejamento e espaço de movimentação. Inconvenientes? O ruído do trânsito, a possibilidade de chuva (o Porto não é propriamente famoso pelo tempo sempre solarengo), e o facto de, apenas após alguns dias, os livros expostos terem já uma camada de pó que não costumava existir no Palácio de Cristal.
Como nota acessória, o jornal i noticiava há dias que a polícia municipal se entreteve a multar os expositores por causa de veículos parados na avenida aquando da descarga de livros para a feira. Será que estes tipos se passam? Com tantos locais na cidade em que o estacionamento selvagem impera e prejudica diariamente imensa gente, vão implicar com os veículos das editoras numa zona onde não há grandes alternativas e a ocupação da faixa mais à esquerda nem sequer prejudica significativamente (pelo menos fora de horas de ponta) o fluxo de trânsito?
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