como sobreviver submerso.

Terça-feira, 26 de Janeiro de 2010
Eu e o meu cérebro
Já estou na idade em que me dão brancas com frequência. Tento aceder a um ficheiro que tenho a certeza estar algures no meu (reconhecidamente desorganizado) cérebro e fico a sorrir com ar de cretino e a emitir durante uma infinidade de segundos o som que o meu pai fazia (não descarto a possibilidade de ser uma característica genética) quando eu lhe colocava perguntas sobre sexo. (Desconfio, porém, que ele sabia as respostas.) Reconheço finalmente que não me lembro, finjo que não era importante e disfarço tão bem quanto posso (ou seja, mal) a sensação de que toda a gente me deve estar a achar um idiota presunçoso. (Não é exagero: a sensação baseia-se no facto de já duas ou três pessoas me terem chamado idiota presunçoso, uma acusação que me teria destroçado se eu não fosse efectivamente um idiota presunçoso.)
 
Este declínio da minha memória preocupa-me. Artigos de revistas e de sites médicos, já para não mencionar o médico da Oprah, aconselham a exercitar o cérebro. Passo então a vida tentando lembrar-me de coisas de que já me esqueci. Não é tão fácil como parece porque uma pessoa precisa de se lembrar de que conhece a informação mas também de que não se lembra dela. Ou então acontece algo parecido com isto:
Eu: «Como que chamava o cão do Tintin?»
O meu cérebro: «Milou» e, desdenhoso, acrescenta: «Achas que não me lembrava de uma coisa tão fácil, grande parvalhão?»
O meu cérebro é claramente um aluno mal comportado e eu hesito entre apaparicá-lo e ser duro com ele. Quando tenho uma branca, devo sussurrar-lhe «Vá lá, tu sabes isto», ou berrar-lhe «Polpa informe e nojenta, como é possível que não saibas algo tão óbvio?» Nenhum dos métodos parece conduzir a grandes resultados: ignora-me com sobranceria no primeiro caso, fecha-se agressivamente no segundo. Não o controlo. Pelo contrário, tenho com frequência a sensação de que é ele a controlar-me. Pensa no que quer (sim, já sei que os calções que a Venus Williams está a usar no Open da Austrália, por serem de cor similar à da pele dela, fazem com que pareça estar nua por baixo da saia… E daí? Passa à frente, não é preciso estar sempre a pensar nisso), acusa-me do que bem entende (gordo, moi?), causa-me efeitos fisiológicos inconvenientes (err, corar, por exemplo), tudo com a maior das impunidades. E, por muita piada que tenha achado à cena da trepanação no Hannibal (perturbo-o quando o forço a pensar nela), não sou capaz de o retirar e deixar em casa, como tanta gente parece conseguir fazer. O melhor que consigo é que, por vezes, ele se cale quando estou mesmo cansado. Percebo então como deve ser bom conseguir viver sem cérebro. Especialmente num país como este.
 
(Fotografia filho da mãe, conseguiu forçar-me a colocá-la no post – retirada daqui.)


publicado por José António Abreu às 08:37
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