Seja qual for a posição que se tenha em relação à independência da Catalunha e à validade dos referendos em processos deste género (em especial, como o Pedro Correia salientou por alturas do realizado na Escócia, quando uma maioria pouco expressiva influenciada por uma realidade conjuntural pode forçar uma escolha sem retorno), convém não confundir as coisas: o que se passou ontem não foi um referendo; foi uma manifestação dos independentistas, a que mais de 60% dos potenciais votantes decidiu não comparecer. O governo de Madrid deve certamente reflectir sobre o facto de quase dois milhões de catalães se revelarem a favor da independência total e aceitar que o assunto tem raízes históricas demasiado profundas para ser empurrado para debaixo do tapete por via de preceitos constitucionais (se as Constituições tendem a garantir status quos frequentemente pouco saudáveis, usadas como grilhetas tornam-se obscenas) mas os independentistas deveriam fazer o mesmo sobre o facto, complementar e não menos significativo, de existirem cerca de quatro milhões que ou não se expressaram ou o fizeram defendendo alguma forma de ligação a Espanha. Desde logo, aceitando que decisões irreversíveis baseadas em questões de identidade cultural velhas de séculos não devem ser tomadas apressadamente, em época de crise económica - ou a questão da identidade cultural parecerá apenas um pretexto para conseguir mais dinheiro para a região; uma jardinice, digamos.
Passo, no Cais de Gaia, por uma mulher segurando um telemóvel no ar, a câmara apontada à outra margem (não, não iria obter uma foto igual à que ilustra este texto, tirada às oito e tal de uma manhã de Outubro em que a cidade parecia não querer acordar). Algo não corre bem e ela começa a bater repetidamente no ecrã com a ponta do indicador direito. Suspira. Lamenta-se: «No me entiendo.» Afasto-me a pensar que é suposto o espanhol comum ter um amor-próprio tão grande quanto o do José Mourinho em dia de especial auto-satisfação e que, todavia, em situação idêntica qualquer português diria «Não entendo», acrescentando depois «esta»... hmmm, digamos «treta», que afinal isto nasce de uma cena ocorrida no Porto, onde toda a gente tem extremo cuidado em evitar o uso de terminologia que possa ferir susceptibilidades alheias. «Não entendo» admite tanto a falha própria (o telefone até é fácil de operar mas eu não o entendo) como a falha do equipamento (ou esta... hmmm, treta se passou ou então é absurdamente confusa). E todos sabemos em que versão pensa mais depressa um português (ainda que seja portuense). Mas «no me entiendo» centra a falha na pessoa. É a mim próprio que eu não entendo. É como dizer: hombre (ou, neste caso, mujer), qé isto diebe ser muy fácil (el materiale tiene siempre razón) e io é que soy tapadito (ou, neste caso, tapadita). O que nos obriga a considerar uma hipótese chocante: a de os espanhóis estarem tão à vontade para se questionarem por falhas que muitas vezes, analisada bem a questão, nem lhes podem ser imputadas que até integraram essa possibilidade na sintaxe das suas frases. No fundo, talvez este seja o melhor tipo de amor-próprio: ter segurança suficiente para considerar primeiro, sem dramatismos, a hipótese de falha própria. Mas, caramba, se isto não condiz connosco, que ou fugimos às responsabilidades ou, caso tal não seja possível, nos mortificamos como filipino em Sexta-Feira Santa, também não condiz com os espanhóis, pois não? Decididamente, no me entiendo.
Adenda: não me venham com... hmmm, tretas acerca do meu castelhano, que ele é perfeito.
Por aqui, canais de televisão e jornais afirmam que a greve geral foi um fracasso. Intoxicação pura e simples. Houve consequências evidentes – e graves. Ontem à tarde, o funcionário da cafeteria do hotel explicava-me, contrito, que não havia casadiellas asturianas porque a pastelaria que as fornece estava em greve.
Enquanto procurava informações sobre a praça de Portugalete, em Valladolid, dei com a vila de Portugalete, situada perto de Bilbao, e fiquei a saber que o apelido Salazar também marcou a sua história. Coincidências cósmicas, uma vez que que a origem do nome da vila nada parece ter a ver com Portugal. (A hipótese mais credível aponta para uma junção do romano Portus com o termo em euskera Ugalete, sendo que o resultado é mais um pleonasmo translinguístico, visto que ambas as palavras significam "porto").
Nota competamente acessória, irrelevante e, como diriam os Gato Fedorento, parva: um dos antepassados dos Salazar que se instalaram em Portugalete era conhecido por "Braço de Ferro" e teve 120 filhos; pergunto-me se foi nele que a SIC se inspirou para o Salazar firme mas engatatão da mini-série televisiva.
Os espanhóis de Puebla de Sanabria, povoação muito merecedora de uma visita situada mesmo junto ao cantinho superior direito de Portugal (perto de Rio de Onor e do Parque Natural de Montesinho), chamaram "Rua" à rua principal que sai da inevitável e florida Plaza Mayor. Ou seja, calle Rua (ou talvez calle de la Rua). Acho simpático. Pergunto-me se teremos em Portugal alguma rua da Calle.
Fico sempre com a sensação de que o ritmo nas auto-estradas espanholas é pelo menos 10 km/h mais lento que nas portuguesas. Nós abrandamos ao entrar em Espanha; os espanhóis aceleram quando entram em Portugal.
Segundo o i, a rainha Sofia de Espanha usou pela primeira vez um voo de uma companhia aérea low-cost (a Ryanair) para se deslocar. Os cínicos acusarão a casa real espanhola de hipocrisia, os pedantes horrorizar-se-ão com o rebaixamento a que se sujeitou um membro da realeza, os fanáticos dos pormenores procurarão saber se chegou com a roupa mais amarrotada que o habitual. Eu não acho bem nem mal mas continuo a ver os reis em carruagens puxadas a cavalos (ou na guilhotina mas deixemos de lado essas fantasias). Aquelas imagens do desfile na Holanda em que a realeza ia de autocarro aberto pareceram-me de uma incongruência absoluta. Será assim tão caro manter um par de cavalos em vez de uma frota de Rolls-Royces? De qualquer modo, mesmo sendo cem por cento republicano, começo a interrogar-me se, afinal, o D. Duarte não ficaria mais barato que o Cavaco e as suas frequentes viagens ao estrangeiro com dezenas de empresários (na TAP, creio). Depois penso que é preciso apoiar a TAP. E ouço na minha cabeça a voz de D. Duarte discorrendo sobre o amor que tem por Timor. Adormeço por instantes e acordo a gritar: «Viva a República!»
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