Denis Johnson é menos conhecido do que outros escritores americanos actuais mas não devia sê-lo (tem companhia nesse clube: Norman Rush, por exemplo). Sonhos e Comboios é o segundo livro dele que leio, após o volume de contos Filho de Jesus, publicado há um par de anos pela Ahab (em Portugal está também editado Coluna de Fumo, vencedor do National Book Award em 2007, e, segundo parece, a Relógio d'Água prepara-se para lançar Anjos, o primeiro romance que publicou, em 1983). Se os contos de Filho de Jesus tinham uma demão de surrealismo, de realidade distorcida, esta pequena novela de oitenta páginas, não dispensando visões nem sonhos (aparecem logo no título, embora o sentido do original, Train Dreams, seja ligeiramente diferente do português), ancora-se acima de tudo num realismo seco, preciso, sem enfeites nem justificações excessivas, onde muitas personagens são delineadas em três ou quatro frases.
A história é simples: Robert Grainier, nascido provavelmente em 1886, no Utah ou talvez no Canadá, classificado como órfão apesar de ninguém saber realmente o que aconteceu aos seus pais, ganha a vida trabalhando primeiro nas obras que ajudam a levar a civilização ao interior americano e mais tarde, quando o corpo já não aguenta esforços físicos intensos, auxiliado por uma carroça e duas éguas, como transportador de pessoas e objectos. Grainier é um homem solitário e de poucas falas, que vive numa cabana isolada na floresta. Tem arrependimentos: uma vez participou na tentativa de linchamento de um chinês, de outra deixou morrer um homem ferido que encontrou nas montanhas, após este lhe contar como, anos antes, abusara de uma sobrinha de doze anos que o irmão dele acabara por matar à paulada depois de a saber grávida. Grainier pensa que estes actos talvez expliquem a dureza do acontecimento mais importante da sua vida; o acontecimento que lhe levou mulher e filha e desencadeou as tais visões. Tirando isso, a sua vida parece nada ter de extraordinário. Como, de resto, o livro. Num primeira análise, Sonhos e Comboios é apenas o relato da vida de um homem simples que, apesar de ter chegado a ver Elvis Presley de relance (à porta da sua carruagem de comboio privativa), lidou sempre com pessoas tão simples e anónimas quanto ele, ainda que ocasionalmente alvo de acontecimentos peculiares, como o fulano que foi baleado pelo próprio cão; o relato da vida de um homem que nunca chegou a ver o mar e andou de avião apenas uma vez, que não conheceu os pais e teve relações sexuais com uma única mulher. E, todavia, sem que o leitor perceba bem como, é também um livro que acaba por espelhar (ou talvez exsudar) muitas das alterações de quase um século de história norte-americana. Oitenta páginas sublimes.
Nota: a ortografia é pré-AO (ou não teria comprado a edição nacional).
Denis Johnson, Sonhos e Comboios.
Edição Relógio d'Água, tradução de José Miguel Silva.
Andava nos seus cinquentas. Tinha desperdiçado a vida toda. Pessoas como ele eram muito queridas para nós, que só tínhamos desperdiçado uns quantos anos.
Denis Johnson, Filho de Jesus
Eu não queria ir para casa. A minha mulher tornara-se diferente da pessoa que costumava ser, e tínhamos um bebé de seis meses que me metia medo, um filho pequeno.
Denis Johnson, Filho de Jesus
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