como sobreviver submerso.

Sexta-feira, 3 de Setembro de 2010
Melanina
Segue-se o post publicado há pouco mais de uma semana no Delito de Opinião, a convite de Pedro Correia. Ele, que deve estar a par das tácticas de marketing adequadas a estas coisas, ilustrou-o com uma fotografia da Halle Berry. (Poucas pessoas se devem ter conseguido concentrar o suficiente para ler o texto mas eu perdoo-as porque se passou o mesmo comigo; felizmente, já o conhecia.) Eu, que quase bloqueei depois de pôr no blogue uma foto provocante da Minnie Driver, decidi usar antes uma das minhas, tirada ali ao lado da Torre dos Clérigos. 

 

Estava parada do outro lado do cruzamento, junto a uma passadeira. Teria cerca de trinta anos e usava um vestido castanho, leve e curto. O cabelo também era castanho, bastante claro, quase louro, mas eram as pernas que chamavam a atenção. Não sendo muito longas, eram bem feitas e tão intensamente brancas que pareciam iluminadas a partir do interior. Nenhum dos homens que passavam ou que, como eu, aguardavam dentro dos veículos pela mudança das luzes dos semáforos parecia conseguir evitar olhar para elas. O semáforo da passadeira mudou para verde ao mesmo tempo que o que me mantinha parado. Arrisquei uma buzinadela de protesto do tipo do carro de trás para a ver avançar, a face interior da coxa direita surgindo por uma abertura do vestido a cada duas passadas. Ao arrancar, lembrei-me de uma passagem de um livro de P. D. James, lido há cerca de vinte e cinco anos. Num campus universitário, vários estudantes estão sentados na relva. Entre eles, uma rapariga de pele extraordinariamente branca, que James descreve como muito mais erótica (não tenho o livro à mão mas julgo não me enganar no termo) do que as restantes. Tratando-se do campus de uma universidade britânica, realçar a alvura da pele equivale provavelmente a descrevê-la como quase translúcida, de uma tonalidade que chega a ser incomodativa para a maioria dos homens (e, suponho, das mulheres) do sul da Europa. Mas a imagem de uma estudante magra, bela, com um vestido curto e pele muito branca, sentada na relva com dois ou três livros ao lado, aparentemente – mas só aparentemente – alheia ao seu próprio grau de sexualidade ficou-me na memória. Terá sido a primeira vez que o adolescente que eu era analisou o papel da cor da pele na sensualidade feminina, ficando aberto à hipótese das mulheres de pele branca poderem ser tão ou mais sensuais que as de pele bronzeada. (Isto de obter lições de vida em policiais em vez de o fazer nas grandes obras de literatura tem muito que se lhe diga, e talvez ajude a explicar algumas das minhas peculiaridades...)

 

Significa isto que me desagradam mulheres de pele bronzeada? Pelos milhões de costas bronzeadas por essas Costas fora, claro que não! Nunca negarei, excepto sob fundamentada ameaça de tortura – digamos, perante alguém maior do que eu, ou apenas ligeiramente mais pequeno, brandindo uma turquês e trauteando Sol da Caparica –, a possibilidade das mulheres serem atraentes independentemente da quantidade de tirosina que os seus melanoblastos entendam polimerizar. O que me faz um pouco de impressão é a ditadura do bronzeado que vigora por cá. Idolatramos tanto pele bronzeada que muita gente sente-se obrigada a consegui-la. Porque é moda; porque pareceria ridículo usar certos vestidos com pele branca; porque seria deprimente voltar ao emprego sem provas claras – ou, neste caso, escuras – de que as férias existiram e valeram a pena. Reconheça-se que isto tem um ponto positivo: mesmo em férias, quase toda a gente funciona por objectivos e ter um para cumprir sempre dá um propósito à quinzena no Algarve ou em Benidorm. Mas as pessoas que detestam grelhar ao sol sobre uma toalha amarrotada estendida em areia quente e com tendência a introduzir-se em orifícios delicados, besuntadas com creme de odor enjoativo, incapazes de escutar o som relaxante das ondas por causa das vozes dos milhares de outras pessoas que com elas partilham a praia (ah, a polifonia dos areais do sul de Espanha!) têm apenas três possibilidades: arranjarem uma forma de se convencer de que até é divertido (agradeço sugestões), irem contrariadas (e lá se vai a ideia de que as férias são relaxantes), ou permanecerem com pele branca e sentirem-se uma variante não tecnológica de nerds (já alguém viu um nerd bronzeado?). É verdade que se pode conseguir uma pele bronzeada sem deslocações à beira-mar, recorrendo a solários e auto-bronzeadores. Porém, os primeiros, para além de parecerem adereços concebidos para filmes do Flash Gordon ou do Austin Powers (i.e., kitsch), abrem excelentes perspectivas para quem deseje o seu próprio cancro, enquanto os segundos deixam a pele às manchas e – lamento pôr a questão de forma tão abrupta – a cheirar mal. Assim, se ficar bronzeado for mesmo importante para impressionar os colegas de trabalho (especialmente aquela ruiva curvilínea do serviço de pessoal que… er, não interessa) ou para ganhar dois pontos na escala de amor-próprio, mais vale ir à praia. Claro que tomar a decisão não basta. Como se sabe, frequentar a praia obriga a usar trajes reduzidos e isso também constitui problema para gente gorda e tímida, que é forçada a evitar ver-se reflectida nos vidros dos bares e dos automóveis (estes ainda por cima são convexos, deixando corpos rechonchudos positivamente esféricos) se, nos meses que antecedem as férias, não tiver entrado num regime diário de dez copos de água e duas ervilhas, complementado pela leitura de um par de livros de auto-ajuda. A prova da eficácia dos livros de auto-ajuda e da falta de eficácia das dietas é a quantidade de pessoas gordas que, sem qualquer vestígio de timidez, enchem as praias.

 

Mas afinal por que gostamos tanto de pele bronzeada? Aparentemente por causa de Coco Chanel e de Josephine Baker. A primeira ter-se-á distraído ao sol durante uma visita à Riviera na década de vinte do século passado, enquanto a segunda começava mais ou menos na mesma altura a deixar os parisienses pelo beicinho por cantar bem e, acessoriamente, por aparecer quase nua em palco. Os fãs de ambas, umas revistas de moda e alguns industriais com olho para o negócio trataram do resto. (Como se pode negar a perfeição da sociedade capitalista, que nos leva a gastar montes de dinheiro em férias na praia mas nos dá em troca um tema para dois dias de conversa, um bronzeado para duas semanas e a visão de corpos quase nus?) Antes de Coco e de Josephine, pele escura era vista como característica das classes baixas, forçadas a trabalhar ao ar livre. Durante vários séculos, a nobreza fez mesmo questão de branquear a pele, pintando de cor-de-rosa apenas as maçãs do rosto em sinal de boa saúde que, sendo muitos dos produtos branqueadores à base de chumbo, mercúrio e arsénico, nunca durava – mas os cadáveres tinham pele clarinha e tal não se devia apenas aos livores da morte. Na verdade, ainda hoje existem zonas do globo onde pele clara é bem vista: muitos indianos continuam a tentar branqueá-la e experimentem lá convencer uma gueixa a apanhar banhos de sol. Podíamos também discutir o caso do Michael Jackson mas não vale a pena.

 

Deixando a lição de História e voltando às mulheres (não consigo evitá-lo, por muito fora de moda que isso me coloque), não são os tormentos físicos e psicológicos que elas sofrem para conseguirem ficar da cor da Halle Berry que verdadeiramente me incomodam (como quase toda a gente, penso nos outros em função do que é mais interessante para mim, processo a que chamo «altruísmo autocentrado»). O meu problema é simples e de ordem visual: no Inverno, por causa do frio (vivo no Porto, onde as temperaturas matinais chegam a rondar os zero graus), tudo o que se vê das mulheres é a ponta do nariz e das orelhas, o que, mesmo havendo por aí pontas de nariz e de orelhas absolutamente deslumbrantes, me parece insuficiente; no Verão, quando qualquer homem heterossexual e mulher homossexual (estou a tirar um curso online de politicamente correcto) têm oportunidade de apreciar outras zonas (a curvatura dos ombros e do pescoço, a pele suavemente retesada sobre as omoplatas e a depressão entre estas, as covinhas de cada lado dos joelhos, a ondulação em torno do umbigo, aquela zona no fundo das costas onde a reentrância da coluna desaparece num subtil Y invertido), elas apressam-se a eliminar a possibilidade de a isso se juntar a fruição de uma palete de cores completa, do branco nórdico 8365 ao preto 890 (catálogo da Dyrup), e ficam todas em tons de castanho. É certo que isto torna especialmente gratificante descobrir exemplares que se estejam nas tintas (é uma maneira de dizer) para a moda do bronzeado, como a rapariga do semáforo, mas não compensa a chatice que constitui esta nossa tendência para a uniformização. Mesmo – gostaria de deixar isto bem claro – nada me movendo contra as omoplatas da Halle Berry. Infelizmente.



publicado por José António Abreu às 22:11
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Quarta-feira, 25 de Agosto de 2010
Entretanto, noutro blogue...
O post de hoje pode deglutir-se aqui. Pedro Correia, do Delito de Opinião, veio cá pescá-lo, para incluir na série de posts de convidados que o Delito vem publicando. Levou um post grande, pesado, luzidio, que à primeira vista faria o orgulho de qualquer poscador e poderia até ter dado origem a uma daquelas fotografias em que vê um post pendurado ao lado de uma régua e do impante herói que o fisgou (não nos lembrámos). O pior é o sabor. Mas aposto que o Pedro, simpático, vai pôr cara de valente e dizer que é óptimo. (Acrescente-lhe muito sumo de limão, que sempre ajuda. E obrigado pelo convite.)


publicado por José António Abreu às 13:30
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Terça-feira, 24 de Novembro de 2009
Megalomanias com telhado
Excelente série de posts de João Carvalho no Delito de Opinião sobre obras polémicas da arquitectura. A megalomania dos arquitectos (sempre convencidos do seu estatuto de «artistas»), dos políticos (sempre desejosos de «deixar obra») e até dos cidadãos comuns (nem sempre exemplos de bom-gosto) é visível por todo o planeta. Às vezes o resultado dá para sorrir, outras vezes é pura e simplesmente deprimente.


publicado por José António Abreu às 19:21
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Segunda-feira, 31 de Agosto de 2009
O importantíssimo desmancha-prazeres

É oficial: há uma conspiração para colocar a nu a minha falta de desportivismo (ainda assim, menos mal que é isso porque colocar a nu outras insuficiências minhas seria muito mais embaraçoso). O Pedro Correia, que já tinha tido a gentileza de recomendar um post meu, decidiu incluir O Escafandro na lista de blogues merecedores do prémio “Seu Blogue é Viciante”, depois do Delito de Opinião o ter – justamente – recebido. Ora, caro Pedro, garanto que ninguém, nem sequer eu, me acha importantíssimo. (A minha mãe considera-me, vá lá, importante e houve uma época em que talvez me tenha considerado importantíssimo mas logo que entrei para a escola percebi que a opinião dela era minoritária.) A questão é que, depois de arrancar um tufo de cabelo da têmpora direita de tanto a coçar ao alinhavar esta resposta a honra similar concedida pela Cristina Mendes Ribeiro, do Estado Sentido (e custa-me tanto dizer não a raparigas inteligentes), compreender-se-á que não posso mudar de posição de um momento para o outro (ou, mais precisamente, de Sexta para Segunda-Feira). Vou, pois, regressar ao meu canto e continuar a apelidar-me de desmancha-prazeres.

 

Adenda: este post foi editado. Tirei um pequeno parágrafo que estava a mais.



publicado por José António Abreu às 13:38
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