Um pai convida o filho de treze anos para passar um ano com ele numa ilha isolada do Alaska. O rapaz, Roy, hesita. Mal conhece o pai, que se divorciou há anos da sua mãe e tem vivido com outra mulher. Primeiro diz que não quer ir mas depois acaba por aceitar o convite. Via-se a si próprio ajudando o pai, os dois fazendo caminhadas e pescando e passeando por glaciares brilhando à luz do sol. Sentia já saudades da mãe e da irmã e dos amigos, mas sentia que havia nisto qualquer coisa de inevitável, que na realidade não havia escolha nenhuma. Roy chega à ilha renitente, céptico, já ligeiramente aborrecido, quase certo de ter cometido um erro. Por sua vez, o pai vem todo animado, dizendo que irão passar uns meses fantásticos, só os dois. Vamos fazer uma reserva de salmão seco e fumado, também, e vamos fazer doce e salgar carne de veado. Nem vais acreditar em todas as coisas que vamos fazer. Mas rapidamente Roy começa a perceber que nada será assim tão simples. O contacto com o mundo exterior faz-se através de um rádio e de um hidroavião que, de longe a longe, passa pela ilha. Mais nada. Esta ausência de contacto, agravada pelo facto de as condições climatéricas se apresentarem mais duras e as comunicações mais difíceis do que o previsto, transforma um ambiente aberto, de céu, montanhas, florestas e água, num mundo claustrofóbico que realidades inesperadas (entre outras, a cabana arrendada apresenta falhas imprevistas para uma estada tão longa e, pouco tempo depois de chegarem, um urso destrói grande parte da comida que trouxeram) vêm agravar. Mas é o pai que começa a constituir o maior motivo de preocupação para Roy. Os planos dele revelam-se imperfeitos, há tarefas em que se mostra bastante menos à vontade do que afirmava estar, reage com frequência de forma ilógica e intempestiva. E parece ter ainda outros problemas, mais estranhos e profundos: durante a noite, Roy consegue ouvi-lo a chorar na cama. O que se vai passar é tão inesperado como lógico. E muito duro.
Se em A Estrada McCarthy fez dos outros humanos a maior ameaça, Vann quase não precisa deles (e com isto não estou a menorizar A Estrada, que entraria em qualquer top de melhores livros da primeira década deste milénio que eu compilasse). Os outros humanos são essenciais (especialmente, já o referi, as mulheres) mas não são eles a ameaça. Nem a natureza, que serve para expor e intensificar os problemas das personagens. Em A Ilha de Sukkwan, o Mal não vem de fora. De facto, talvez nem exista Mal (uma grande diferença em relação a McCarthy); existem falhas, incapacidades, incompreensões. E se A Estrada é consistentemente mais assustador, Vann consegue por vezes ser mais duro do que McCarthy. No final, por exemplo. Em A Estrada, de forma porventura surpreendente, McCarthy permitiu-se um toque de esperança. Vann não o faz. Mas compreende-se: no fundo, A Estrada é uma história de amor enquanto A Ilha de Sukkwan é uma história de incompreensões. Um livro belíssimo (com uma lógica talvez mais masculina do que feminina), extraordinariamente bem escrito, em que o cenário pode estar afastado do leitor comum (quantos de nós já estiveram no Alaska no pino do Inverno?) mas a conclusão é universal: sim, nunca compreendemos nada a tempo.
David Vann, A Ilha de Sukkwan.
Edição Ahab, tradução de José Lima.
Adenda: algumas críticas, mais ou menos inadvertidamente, permitem que se suspeite do que acontece no livro. Ainda que talvez se suspeite mal, no caso de pretenderem ler A Ilha de Sukkwan (e não passam de um monte de células patetas se não o fizerem), é capaz de ser preferível evitarem consumir demasiadas. Também por isso não coloco aqui links para duas entrevistas a David Vann publicadas por cá. Se fizerem uma pesquisa online encontram-nas num instante mas continuo a recomendar que leiam o livro primeiro.
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