como sobreviver submerso.

Sexta-feira, 4 de Novembro de 2016
Benefícios tangíveis e benefícios colaterais

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Samuel Spade's jaw was long and boney, his chin a jutting v under the more flexible v of his mouth. His nostrils curved back to make another, smaller, v. His yellow-gray eyes were horizontal. The v motif was picked up again by thickish brows rising outward from twin creases above a hooked nose, and his pale brown hair grew down - from high flat temples - in a point of his forehead. He looked rather pleasantly like a blond satan.

 

A tradução (de Baptista de Carvalho, para o nº 34 da colecção Vampiro original) é fraquinha:

O rosto de Samuel Spade era longo e ossudo e o seu queixo formava um pronunciado V, sob o V mais suave da boca. As narinas abriam-se, também sob a forma de um V mais pequeno. Os seus olhos verde-claros rasgavam-se horizontalmente, em forma de amêndoa. Sobranceiras a um nariz aquilino, viam-se duas rugas paralelas donde emergiam espessas sobrancelhas cuja configuração era, uma vez mais, a de um V bem vincado, caprichosamente invertido. O cabelo castanho-claro tinha como fronteira uma testa alta e despida de rugas sobre a qual avançara, como um istmo original, uma porção de cabelo que formava, assim, no centro, um «bico de viúva». À primeira vista, Spade tinha o aspecto agradável de um demónio saxão. Naquele momento, inquiria de Effie Perine:

- Que se passa, meu amor?

 

Na primeira vez que li O Falcão de Malta, de Dashiell Hammett, o início não me chamou a atenção. Poucos adolescentes gostam de descrições, excepto se forem de partes anatómicas mais sugestivas do que a face das personagens. Lembro-me, porém, de ficar fascinado - e horrorizado - com a frieza de Sam Spade, o detective privado no centro do enredo. James Ellroy, que muitos consideram herdeiro de Hammett - começando talvez pelo próprio, pouco dado a demonstrações de modéstia -, afirmou numa entrevista à The Paris Review preferir Hammett a Chandler por este ter escrito do ponto de vista do homem que gostaria de ser enquanto Hammett escrevera do ponto de vista do homem que temia ser(*). Eu admito que Chandler era globalmente melhor escritor do que Hammett mas, ainda assim, compreendo Ellroy. E, pegando novamente há uns anos n'O Falcão de Malta, descobri com surpresa que o jogo estava claro desde o primeiro parágrafo. Sam Spade é o diabo. Ou, vá, um diabo. Uma versão refinada do Continental Op dos livros anteriores, no sentido em que é fisicamente atraente, como qualquer verdadeiro diabo terá de ser (representá-lo com formas grotescas não passa de um truque para tornar mais fácil resistir-lhe). Nenhum humano normal, passível de compromissos, distracções, hesitações, ingenuidades e emoções, chega a ter qualquer hipótese de enganar Spade. A mulher fatal, que Hammett praticamente inventara em Red Harvest e que, pelo menos ao nível psicológico, desgraça o detective em tantos outros livros e filmes, está condenada desde o início(**). No momento-chave, Spade é-lhe imune e, pouco depois, parece já nem se lembrar da sua existência. Não é impossível que as garantias de amor dela fossem verdadeiras. Mas é irrelevante. Ao contrário de Philip Marlowe, o alter ego de Chandler, Spade não é homem para permitir-se actos sentimentais. Não é homem para arriscar o pescoço sem que exista algo tangível a ganhar. Para Spade, o amor seria sempre - e apenas - um benefício colateral.

 

P.S.: O carácter pouco heróico de Sam Spade está bem presente na adaptação cinematográfica de 1941, realizada por John Huston, com Humphrey Bogart no papel principal. De resto, Huston poucas vezes mostrou heróis tradicionais nos seus filmes e o próprio Bogart - em 1941, ainda longe do nível de estrelato que viria a atingir - desempenhou frequentemente personagens antipáticas (recorde-se outra colaboração com Huston: O Tesouro de Sierra Madre). Se alguém vir um herói no Spade do filme, tal dever-se-á provavelmente ao charme que o cinismo possui e ao peso que, não obstante a carreira variada, o nome Bogart adquiriu.

 

 

Aviso: o texto da edição actual, cuja capa se reproduz acima, está em «acordês».

_______

 

(*) Chandler wrote the kind of guy that he wanted to be, Hammett wrote the kind of guy that he was afraid he was. Chandler’s books are incoherent. Hammett’s are coherent. Chandler is all about the wisecracks, the similes, the constant satire, the construction of the knight. Hammett writes about the all-male world of mendacity and greed. The Paris Review, nº 201.

 

(**) Segundo algumas opiniões, o destino da mulher fatal é precisamente ser punida pelo herói, que castigaria assim o uso de comportamentos pouco consentâneos com o tradicional papel feminino. Pode haver nesta interpretação algum fundo de verdade (um dos receios - mas também uma das fontes de excitação - dos homens sempre foi a possibilidade de as mulheres usarem o sexo como elemento manipulador) mas a generalização - e a inerente acusação de misoginia - parece-me um pouco abusiva.

 

(Este é mais um texto inserido numa série sobre princípios e finais de livros, em curso no Delito de Opinião.)


publicado por José António Abreu às 15:37
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Segunda-feira, 10 de Janeiro de 2011
O lado negro
À época (primeira metade da década de oitenta do século passado), o estilo de escrita pouco me interessava. Seguia – estremeço de vergonha ao admiti-lo – a corrente de pensamento defendida por gente como José Rodrigues dos Santos: o enredo era quase tudo, a forma quase nada. Interessava-me o jogo, a luta de intelectos entre o assassino e o investigador – o confronto clássico dos policiais – e não a qualidade da escrita. Talvez por essa razão sempre tenha preferido Hammett a Chandler (a outra possível explicação obtive-a de James Ellroy e mencionei-a aqui). Marlowe era demasiado filosófico, estava demasiado mergulhado no negrume de um romantismo incurável (que miúdo de doze ou treze anos acha piada a romantismo, ainda que misturado com tiros e mortes?) e não ia directo ao assunto. Já as personagens de Hammett (hesito em chamar-lhes heróis) não se permitiam longas considerações existenciais. Viviam vidas complicadas, faziam o que consideravam necessário – e aguentavam as consequências sem análises ou depressões. Constituiram um choque e uma revelação mas, ao contrário de Marlowe (por que diabo escrevo coisas que só me envergonham?), não um aborrecimento. Nada tinham a ver com Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Sir Henry Merrivale, Perry Mason ou Ellery Queen – não ficavam fora do enredo, olhando para dentro. Não eram tipos indubitavelmente bons, ainda que excêntricos, como Holmes, Poirot, o padre Brown, Mr. Reeder, Nero Wolfe, mas também não eram sacanas violentos e quase indestrutíveis como Mike Hammer, o precursor de Dirty Harry que apenas conheci mais tarde. Eram tipos duros e espertos, cheios de falhas, que tentavam sobreviver. Confessado isto, não se tornará difícil perceber o motivo por que, dos cinco livros de Hammett, recordo com particular intensidade O Falcão de Malta e A Chave de Vidro. Desde logo, têm Sam Spade e Ned Beaumont como protagonistas. A frieza de Spade deixou-me confuso, as manobras de Beaumont estupefacto e inseguro. Depois o universo em que se moviam era completamente diferente daquilo a que estava habituado. Um mundo em que os assassinos não revelavam sentido de decoro (não matavam numa mansão ou num quarto fechado por dentro, com veneno ou uma asséptica pancada na cabeça) e em que as poucas regras existentes pareciam sobreviver apenas enquanto eram convenientes. A Chave de Vidro é particularmente ilustrativo de tudo isto e confundiu-me durante todo o tempo que demorei a lê-lo. Num mundo de gente desonesta, por quem torcer? Estava Beaumont do lado dos «bons»? E, ainda que estivesse, era lícito que agisse daquela forma?*
  
Hammett introduziu-me ao lado negro (ele que, tuberculoso desde a Primeira Guerra Mundial, agente da Pinkerton intermitentemente durante anos, mergulhado em álcool e tabaco, perseguido e preso pelas suas posições esquerdistas, o conheceu bem), numa versão mais perturbante do que a que George Lucas encenava sensivelmente na mesma altura. O lado negro daqueles que, apesar ou talvez por causa dele, fascinam. Há-de haver quem tenha aprendido com outros. Há-de haver quem, logo aos treze ou catorze anos, tenha subido o rio à procura de Kurtz. Há-de haver por aí um miúdo que, inspirado por um nome que viu no genérico de um filme, está a começar uma viagem com um bando de foras-da-lei onde sobressai uma figura alta e glabra conhecida como juiz Holden. No meu caso, foram Sam Spade e Ned Beaumont. E ainda bem. À distância de quase trinta anos e tudo considerado, foram mestres com estilo e não desprovidos de bonomia. Bons malandros, no fundo.

 

Dashiell Hammett morreu de cancro nos pulmões faz hoje cinquenta anos.

 

* A admiração por A Chave de Vidro fez naturalmente com que também adorasse Miller’s Crossing, dos irmãos Coen; a lógica, labiríntica e amoral, é similar.



publicado por José António Abreu às 22:14
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Sábado, 10 de Outubro de 2009
Ellroy tira-me uma dúvida

Fantástica entrevista a James Ellroy no último número da The Paris Review. Por entre afirmações raivosas de grandeza («If you’re confused about something in one of my books, you’ve just got to realize, Ellroy’s a master, and if I’m not following it, it’s my problem» ou «You want swagger, look at Norman Mailer. I don't go around beating people up. I'm just James Ellroy, the self-promoting demon dog. It comes naturally to me. You call it swagger. I call it joie de vivre» ou «I'm only fighting myself. I have a duty to God and to the people who love my books, and that is to get better and better. At this stage of the game, I'm entirely self-referencial» ou, em resposta à pergunta se a posteridade é importante para ele, «It is. I don't want to die. And I'm not going to»), o mad dog da literatura americana (esqueçamos a questão do «policial») explica-me, mais de um quarto de século depois de os ler pela primeira vez e em duas frases curtas, por que prefiro Hammett a Chandler:

Interviewer: «You've called Dashiell Hammett 'tremendously great' and Raymond Chandler 'egregiously overrated.' Why?»

Ellroy: «Chandler wrote the kind of guy that he wanted to be. Hammett wrote the kind of guy that he was afraid he was.» 



publicado por José António Abreu às 12:19
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