Panfleto distribuído à entrada de espectáculos incluídos no programa de Guimarães 2012. Desconheço se o conteúdo tem razão de ser mas não me custa a acreditar que sim. Este tipo de projectos é propenso a megalomanias em que as considerações económicas são detalhes mundanos e irritantes, afastados com garantias de ganhos significativos mas nunca directamente contabilizáveis. Os benefícios de «imagem», a criação de «hábitos», o desenvolvimento de uma «indústria cultural» e mais uma catrefada de chavões vencem sempre o cepticismo. No fundo, tudo não passa de um afinal provinciano desejo de parecer culto e inteligente; tão provinciano que acaba invariavelmente misturado com a satisfação de interesses particulares – pois se artistas «menores» e colaboradores diversos correm o risco de não serem pagos, as «mentes» organizadoras, os seus amigos e os artistas consagrados nunca têm razões de queixa. Claro que muitas vezes também é bem feito para os tais artistas menores, que vêem nestas feiras de vaidades uma oportunidade para se «afirmarem» e ganharem muito dinheiro de repente, à custa do erário público. Mas talvez o mais curioso seja que, depois, valeu sempre a pena, foi sempre um sucesso retumbante. Com o lixo empurrado para debaixo do tapete, as críticas desvanecidas pelo tempo e pelo cansaço, e as contas pagas pelo contribuinte. Cultura? Provincianismo puro.
Esta é fácil. Há uma larga fatia de criadores culturais que se formaram mais a partir de outras criações artísticas, e de prelecções e discussões esotéricas sobre o que é arte e quão mais «profunda» e «nobre» do que tudo o resto ela é, do que da vida. (Como os políticos em relação às estruturas partidárias.) Criam obras que apenas eles, os iniciados no seu círculo e as vacuidades presunçosas que se excitam com tudo o que parece diferente conseguem (ou, pelo menos no caso dos últimos, fingem conseguir) descodificar, e que nunca funcionariam sem a descodificação. Nas artes plásticas, estes artistas suscitam sobrolhos franzidos. Nas artes performativas, encolher de ombros. Na música ou no cinema, ranger de dentes. No fundo, seguem-se duas vias: ou se cria algo de banal e alguém (o próprio «artista» ou os tais apaniguados) lhe acrescenta um significado profundo («esta tela, que parece apenas mostrar uma linha branca sobre fundo negro, representa afinal a possibilidade de uma vida alegre e luminosa num ambiente escuro e ameaçador; não está totalmente direita porque é impossível ter uma vida totalmente recta e aquela pequena mancha na extremidade da linha – que quase parece um borrão, no que é um delicioso detalhe de coragem e humildade por parte do artista, que não receia as más interpretações – coloca-nos perante um ponto de interrogação, perante a questão final de saber o que virá depois»), ou se reciclam obras anteriores, tornando tudo mais presunçoso e difícil de entender (um pouco como muitos dos livros – tão saudados hoje em dia – que se debruçam sobre o processo de criação literária: auto-referenciais, densos, mergulhados em terrenos a que apenas impenetrabilidade e/ou jogos formais acrescentam novidade). Estes são os artistas que se consideram com tal. Insuportáveis, como quaisquer outras pessoas demasiado cheias de si mesmas. Em boa medida, são eles que dão mau nome à cultura e acirram os espíritos contra os subsídios que esta recebe. Até porque dificilmente sobreviveriam sem eles.
Isto não seria especialmente pernicioso se, com frequência, esta tendência para passar da paixão histérica à negatividade extrema não ajudasse a destruir a carreira de muita gente. Os Bloc Party definham na esteira de Silent Alarm; os The Strokes nunca chegaram – e provavelmente nunca chegarão, porque até esse nível constituiria agora um desapontamento – ao patamar de Is This It (sim, rapazes, provavelmente é); Interpol, Franz Ferdinand, Arctic Monkeys, MGMT – tudo bandas recentes e já over the peak. Devendra Barnhart, Bright Eyes – mais ou menos esquecidos. Ao segundo álbum, os Vampire Weekend começam a ser olhados de lado. E estes são os que resistem. De quantas bandas com um primeiro álbum recebido em fanfarra já nos esquecemos? (She Loves Revenge, anyone?) Conseguirão os XX escapar a esta síndrome? Ou Florence and the Machine? Ou os Micachu and the Shapes ou os The Invisible ou os The Drums ou os Fleet Foxes ou a nova banda que está a ser lançada em Londres… só um instante… dois, um... neste preciso momento? Duvido. Apenas mostramos magnanimidade para o que vem de trás, para o que se tornou icónico ainda nós andávamos de chupeta e acerca do qual seria demasiado arriscado dizer mal: Dylan, Waits, Springsteen – esses merecem consideração e críticas positivas mesmo quando se limitam a fazer a música que sempre fizeram. Cantores ou bandas mais recentes – nem pensem nisso. Façam o favor de se reinventar a cada novo disco. (Excepções? Existem. The National, TV on the Radio, Animal Collective... mas veremos durante quanto tempo.)
Estamos cada vez mais impacientes. E fanáticos. Adoramos ou detestamos. Adoramos num momento, detestamos no seguinte, já mortalmente aborrecidos. A continuarmos assim, poucas obras longas serão capazes de se impor daqui para a frente. Atingiremos então o culminar da previsão de Andy Warhol: no futuro, toda a gente terá os seus quinze minutos de fama mas ninguém chegará ao décimo sexto.
Houve uma época (e se não houve registe-se a lenda) em que as pessoas incapazes de perceber o encanto de ler, de ouvir música clássica, de assistir a filmes europeus, de visitar exposições de arte mantinham um silêncio respeitoso quando perante estes temas. Pensavam: a falha é minha. Hoje parece não haver pejo em atacar aquilo que não se percebe. Usam-se muitas vezes argumentos de custo (manter o S. Carlos ou a Casa da Música para deleite de meia dúzia?*) mas há questões mais graves por baixo dos ataques. Há a indisponibilidade para aceitar o que não se entende e para procurar entendê-lo. Experimentem dizer num grupo onde se elogiem os Il Divo que os detestam. Que ópera a sério não é aquilo. Serão olhados como se tivessem acabado de aterrar ali e ninguém vos conhecesse. Com o desprezo que as posições maioritárias permitem.
Mais do que conhecimento, cultura é um estado de espírito. Uma forma de vida.
* Que uma Câmara financie directa ou indirectamente uma festa que tenha Tony Carreira ou os Xutos (sem qualquer espécie de juízo de valor sobre a música que um e outros fazem) como cabeça de cartaz parece não gerar anticorpos.
Extenso artigo sobre António Lobo Antunes na New Yorker. Interessante mas deprimente para qualquer português (mesmo os que, como eu, têm poucas ilusões acerca do país). A amargura de Lobo Antunes (que respeito, apesar de não ser um dos meus autores favoritos), é escalpelizada pelo autor do artigo, originando o retrato de um povo triste, sem rumo, órfão de grandezas desaparecidas há quatro séculos, mergulhado num consumismo inane. Duro – mas provavelmente não longe da realidade.
Se calhar é por estas coisas que, nas campanhas publicitárias, usam antes pessoal do futebol.
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