Na maior parte das vezes, um bom final é também um início, ainda que de algo desconhecido. Mesmo quando apresentam a morte da personagem principal – ou até uma catástrofe global, ao jeito de muita ficção científica da década de 1950 -, poucos finais serão dignos de ficar na memória se da personagem não subsistir um rasto e da história uma expectativa para o futuro.
Don DeLillo terminou o seu mais longo romance – Submundo – com uma única palavra: «Paz». Um desejo, mas também uma pausa após um caleidoscópio de mil páginas acerca de uns Estados Unidos sob a ameaça nuclear. Cormac McCarthy é mais negro. Em A Estrada, de 2006, a ameaça (qualquer que fosse; McCarthy não especifica e também não é preciso) concretizou-se. Acompanhamos um adulto e uma criança, pai e filho, através de um mundo de cinzas, regressado à barbárie. Por causa do filho, o pai tenta adiar a morte. Mas as únicas personagens de McCarthy que a morte nunca parece atingir são as que personificam o mal (ou talvez seja mais exacto escrever a ausência de valores éticos, ou ainda as forças primodiais - e amorais - que ligam os humanos aos seus antepassados selvagens e aos restantes seres vivos). Personagens como o juiz Holden de Meridiano de Sangue e o assassino Anton Chigurh de Este País não é para Velhos. Em A Estrada, e não obstante os actos de crueldade que vai praticando, o pai é demasiado humano para sobreviver. O filho humaniza-o. Morre, pois. E é somente após a morte do adulto - ameaçador com a sua arma de fogo e o seu desespero - que, para surpresa e alívio do leitor, um grupo de pessoas se aproxima e toma conta do miúdo. Abre-se uma fresta de esperança. A humanidade ainda tem uma hipótese, num futuro que nunca será igual ao passado. Será outra coisa, outra realidade a extrair dos mistérios da vida, que em muito ultrapassam o ser humano - como o último parágrafo deixa evidente:
Outrora existiam trutas nos regatos das montanhas. Víamo-las paradas na corrente cor de âmbar, com a fímbria branca das barbatanas a ondular mansamente na água veloz. Cheiravam a musgo quando as segurávamos na mão. Luzidias e musculosas e a contorcerem-se. No dorso tinham desenhos vermiformes que eram mapas do mundo no seu devir. Mapas e labirintos. De uma coisa que não podia ser recriada. Cuja harmonia não podia ser reposta. Nos fundos vales onde as trutas viviam, todas as coisas eram mais antigas do que o homem e nelas ressoava um mistério.
Da edição da Relógio D’Água (2007), com tradução de Paulo Faria.
Na versão original:
Once there were brook trout in the streams in the mountains. You could see them standing in the amber current where the white edges of their fins wimpled softly in the flow. They smelled of moss in your hand. Polished and muscular and torsional. On their backs were vermiculate patterns that were maps of the world in its becoming. Maps and mazes. Of a thing which could not be put back. Not be made right again. In the deep glens where they lived all things were older than man and they hummed of mystery.
Resolução de ano novo ou o filme que mais vezes não vi
Em Julho de 2007, Rogério Casanova escrevia no mais-morto-que-comatoso Pastoral Portuguesa: Ainda não li Falling Man, e posso assegurar que se trata de uma não-leitura compulsiva. Aliás, é um dos livros que mais vezes não li nos últimos tempos. Desde que a encomenda da Amazon chegou já o devo não ter lido umas seis ou sete vezes, sempre com um enorme prazer. Casanova, sportinguista frágil como qualquer outro de nós (qualquer outro de nós, sportinguistas, entenda-se), tentava proteger-se da desilusão que seria comprovar a existência de mais um DeLillo abaixo das suas – dele, Casanova, que as suas, leitor, nem consigo imaginar – expectativas. Eu, que li Falling Man e, apesar de não o classificar entre os melhores DeLillo (experimentem Ruído Branco), fiquei convencido de que não teria usado melhor o meu tempo lendo qualquer coisa alinhavada pelo José Rodrigues dos Santos, experimento reacção similar com A Estrada. Não o livro de Cormac McCarthy mas o filme baseado no livro de Cormac McCarthy. Permitam-me que explique.
Li o livro, na versão original, ainda antes de McCarthy se tornar conhecido por, afinal, não só aceitar dar entrevistas como dar entrevistas à Oprah. Num understatement incontornável (o inglês é para que possam comprovar que eu seria mesmo capaz de ler o livro no original), posso dizer-vos que ADOREI o livro. Adorei-o a ponto de não me envergonhar de usar maiúsculas ao escrever que o adorei. Li-o, reli-o, fiz-lhe festinhas. E depois soube que, lá pela Hollywood do Michael Bay, tinham decidido fazer um filme baseado nele. Ora eu também gosto de filmes. Gosto tanto, aliás, que gosto até mesmo dos que foram rodados antes de Deus inventar as cores ou a fala humana (num àparte, deixem-me confessar sempre ter achado estranho que Deus tivesse inventado a música de piano antes de dar voz às pessoas mas suponho que isso só demonstra que os Seus desígnios – de Deus, não seus, leitor, nem do Casanova, por muito divino que tanto você como ele se possam considerar – são mesmo insondáveis, conforme alguém, num filme sonoro qualquer – A Vida de Brian? –, terá exclamado um dia). Mas a notícia apavorou-me tanto como qualquer aparição do Ministro das Finanças na televisão. Filmar A Estrada? Como? Onde? Por quem? Mais importante: porquê? A minha reacção imediata foi prometer a mim mesmo que não o veria antes do momento em que obtivesse a certeza absoluta de não sair desiludido ou a Alzheimer me tivesse atacado o suficiente para eu não me recordar do livro. Fui apanhando notícias sobre o filme aqui e ali (Viggo Mortensen, até que não era mal pensado; John Hillcoat, melhor ainda) e, quando o trailer saiu, espreitei. Recuei, horrorizado. E depois não só não vi o filme como dei cabo dos dentes ao rangê-los de cada vez que passava junto a um cinema exibindo o cartaz. Sobrevivi a essas semanas difíceis (mesmo você, caro leitor, que não me conhece, terá de admitir que sou mais resistente do que pareço), A Estrada, o filme, lá acabou por sair de exibição e eu passei uns meses de paz e alegria.
E depois saiu o DVD. E depois o DVD entrou em promoção. E depois eu não resisti e comprei o DVD (por acaso foi o Blu-ray, que não quero não apreciar A Estrada só por faltar definição ao apocalipse). E isso foi há cerca de um ano e eu ainda não vi A Estrada. Não o vi em Janeiro e em Fevereiro e em Março de 2011. Tornei a não vê-lo em Abril e em Maio e em Junho. No Verão não o vi várias vezes. E fiz questão de voltar a não vê-lo no Outono e no início do Inverno. Tenho-o aqui ao meu lado enquanto escrevo isto. A capa mostra o Viggo a proteger o miúdo com o braço direito, o revólver na mão esquerda; na parte inferior, o selo de qualidade Selecção Oficial do Festival de Veneza 2009 – a melhor recomendação possível, se considerarmos apenas festivais de cinema ocorridos em cidades banhadas pelas águas do Adriático. Atrás, na ficha técnica, a indicação realizado por John Hillcoat – e eu adorei (em minúsculas) A Proposta (cujo argumento, já agora, foi escrito por um senhor chamado Nick Cave). Mas nem assim. Quase um ano e eu ainda estou para enfiar o disco no leitor (que também está aqui, a meros três metros, por baixo do televisor). Chateia-me, esta incapacidade. Consolo-me um pouco pensando que mais vale tê-lo comprado demasiado cedo do que ser obrigado a fazê-lo depois do fim do euro. Foi um investimento, digo-me. Tal como no caso de outros filmes e séries que, por falta de tempo, ainda não vi. Ou no dos livros. Em vez de mandar os poucos euros que tenho para uma conta na Suíça, converto-os em entretenimento para usufruto futuro. Tem lógica, não? Infelizmente, quando o assunto é A Estrada, nem assim me consigo convencer.
E é por isso que decidi fazer do visionamento de A Estrada, o filme, a minha resolução de ano novo. Antes de 2012 acabar, eu hei-de ver este filme.
Não me parece que seja hoje. Mas tenho tempo. O ano até é bissexto.
De Oslo ao deserto americano ou a sensação de irrelevância nas sociedades saudáveis
Sim, há o medo do outro, especialmente quando ele é diferente, e a ameaça a valores «tradicionais», encarados como definidores de uma certa pureza, e haverá também distúrbios psiquiátricos que outras pessoas abordarão com mais propriedade do que eu, apesar de frequentemente a teoria explicar muito pouco. A mim, a Noruega fez-me voltar a Ballard. Numa sociedade totalmente saudável, a loucura é a única liberdade possível. Aparentemente, não existem sociedades mais saudáveis do que as nórdicas. Nível de vida invejável, civismo exemplar, protecções sociais generosas. Contudo, os nórdicos são conhecidos pela taxa de suicídios (ainda que, à la Liberty Valance, o mito possa ter-se sobreposto à realidade), e, com certa frequência, surgem da Escandinávia notícias de matanças aparentemente aleatórias ou, como no presente caso, na sequência de planos minuciosos. A violência, que em países menos saudáveis tende a surgir associada à luta pela sobrevivência, a conflitos étnicos ou religiosos com dezenas ou centenas de anos (transformados eles mesmos em tradição) ou à raiva pelas injustiças sociais, é nos países ocidentais (no sentido lato de «ocidentais») uma recusa da conformidade. É uma consequência da sensação de que não se é mais do que um elemento irrelevante numa gigantesca engrenagem funcionando de acordo com uma lógica cada vez mais asfixiante e impossível de alterar. Ballard avisava que os actos «inexplicáveis» de violência continuarão a aumentar. É a única liberdade possível. Enfim, talvez não seja bem a única: o suicídio, um acto de violência dirigido para dentro (note-se como a taxa temaumentado nas últimas dezenas de anos), será outra. E depois há paliativos. Dos mais corriqueiros – o consumismo desenfreado, a modificação do corpo, os hobbies tornados obsessão, a pintura de frases de protesto em paredes – aos mais perigosos. Por exemplo, a adesão a posições extremistas, que oferecem um conjunto de regras totalmente diferente. Mas os extremistas são confrontados com o facto de nas sociedades «saudáveis», da Europa do Norte ou de qualquer outra zona geográfica, não ser suficiente adoptar certas posições e alardear o facto. Escrever na internet comentários xenófobos, racistas ou contra uma determinada religião gera apenas umas quantas respostas inflamadas. Organizar uns encontros ou umas marchas pacíficas é notícia para rodapé de noticiário. Não há mudança. Ninguém liga. Continua-se irrelevante. Resta subir a parada. Tornar as marchas violentas ou (solução especialmente adequada para solitários, em número cada vez mais elevado nas sociedades «saudáveis») chamar a atenção por meios mais bombásticos (no pun intended). E é então que a sociedade, atingida no seu âmago, na sua sanidade, presta finalmente atenção. Um tipo que mata setenta e tal pessoas já não é um «idiota» que coloca coisas na internet. É um «monstro», alguém que abala certezas, que obriga a pensar. As sociedades «saudáveis» são sociedades anestesiadas e só a morte – e já não basta a morte de uma ou duas pessoas, a menos que sejam famosas – é suficientemente forte para dissipar o efeito da anestesia. Durante uns dias.
Ligada a esta sensação de manietação e irrelevância, há pelo menos um outro factor que talvez possa ser abordado analisando a pergunta: por que são quase todos estas pessoas, estes assassinos, estes «monstros», do sexo masculino? (Como os suicidas, de resto.) Ballard outra vez: Nós não somos os seres racionais que pensamos ser. Somos selvagens. Os nossos sistemas nervosos centrais, os nossos cérebros, os nossos instintos, os nossos reflexos estão adaptados à vida de caçador solitário. Ou Cormac McCarthy. Por um motivo completamente diferente, Ana Cristina Leonardo levou-me a retirar Meridiano de Sangue da estante. Reli algumas das dissertações filosóficas que o juiz Holden faz aos seus companheiros, nos intervalos entre matanças e recolha de escalpes (sim, é ficção mas frequentemente aprende-se mais na boa ficção do que em herméticos manuais científicos) . Eis a natureza da guerra, cujo prémio é a um tempo o jogo e a autoridade e a justificação. Vista desta maneira, a guerra é a forma mais genuína de adivinhação. É pôr à prova a nossa vontade e a vontade de outrem no quadro daquela vontade mais vasta que, pelo facto de vincular todas as vontades individuais, é obrigada a escolher. A guerra é o jogo supremo porque representa, em última análise, o romper da unidade da existência. A guerra é deus.[…] Quando um homem cai morto num duelo, isso não demonstra que as suas ideias estavam erradas. O facto de ele se ter envolvido numa tal prova apenas atesta uma nova e mais vasta perspectiva. A vontade dos duelistas de renunciar a quaisquer novas discussões, reconhecendo o carácter trivial de todo e qualquer debate, e de apelar directamente às instâncias do absoluto histórico indica claramente a pouca importância de que se revestem as opiniões e a grande importância das divergências em torno dessas mesmas opiniões. Pois a discussão é efectivamente trivial, mas o mesmo não se pode dizer das vontades opostas que a discussão pôs em relevo.* A guerra enquanto jogo último. Enquanto necessidade masculina (ah, a testosterona) de conquista de poder e de testar limites – os do outro e os próprios. Antes, os homens caçavam e lutavam e, numa fase em que isso já não era bem visto, ainda entravam em duelos. Mas nas sociedades «saudáveis» (em parte, sinónimo de mais femininas) não se luta – não verdadeiramente, pelo menos. As lutas são mal vistas e as que existem têm de permanecer dentro dos limites entendidos como aceitáveis. Uma discussão num bar não pode acabar em pancadaria, da mesma forma que um desaguisado entre vizinhos não pode acabar em tiros ou em facadas. Nas sociedades «saudáveis» apenas as claques de futebol guerreiam (por vezes, sob falsos pretextos: de que forma a paixão a um clube, só por si, justificaria vandalizar áreas de serviço?). Ballard, aliás, defendia que se tornassem os desportos mais violentos e não menos. Até o trânsito – um escape em sociedades um pouco menos «saudáveis», mais dadas à troca de insultos, como a portuguesa – foi em muitos países civilizado à força de radares e pressão social. Esta luta contra os instintos tem consequências. Deixa latente uma sensação de cobardia, de insignificância, pronta a manifestar-se. Pronta a agarrar qualquer pretexto.
Ainda por cima, numa reacção natural mas, em parte, contraproducente, a resposta política e social a casos como o da Noruega é envidar esforços para aumentar o grau de sanidade. Lançar programas para ensinar tolerância. Perseguir ou regular sectores que não parecem tão «saudáveis» quanto deviam (heavy metal e jogos de vídeo, por exemplo). Proibir o acesso a armas de fogo. Criar mecanismos de vigilância mais intrusivos. Tudo em nome de uma lógica inatacável. Sensata. Civilizada. (E isto não é ironia; eu não me importava de viver na Noruega e é evidente que não devemos andar por aí aos tiros uns aos outros, até porque a minha pontaria deixa um bocado a desejar – e este último ponto, sim, é ironia.) Mas, afirmem Rousseaunianos e outras almas bem intencionadas o que afirmarem, o homem não é um ser «saudável». Ainda não. Talvez daqui a uns milhares de anos – ou umas dezenas, com manipulação genética (hurrah). Nos próximos tempos, ajudada pelo declínio económico, a pressão aumentará. Desconfio que em breve voltarei a Ballard.
* Edição Relógio d'Água, 2004. Tradução de Paulo Faria. Páginas 295 e 296.
Realizador deste filme, Hillcoat também me merecia crédito. Mas nem por isso eu deixava de ter medo. Descubro-me com razão demasiadas vezes hoje em dia. E a detestar que isso aconteça.
Via Senhor Palomar cheguei ao trailer do filme The Road. Há um par de anos, quando soube que o filme iria existir, suspirei e prometi a mim mesmo não pôr os pés em cinema que o exibisse. Mas a curiosidade é um roedor só aparentemente benigno. Hoje ainda hesitei mas, mesmo com o sabor da fatalidade na garganta, acabei por clicar no triângulozinho ‘play’.
Primeiro, aquilo de que a maioria dos frequentadores actuais de cinema gostará: as partes inicial e final do trailer. São de tal modo assustadoras que me deixaram a tremer e reprimindo vómitos. As imagens da catástrofe (quem necessita de a ver se imaginá-la é tão mais poderoso?), a música sincopada, a montagem feita por alguém que acabara de ingerir uma dúzia de latas de Red Bull, tudo parece anunciar uma nova inanidade de Michael Bay – não The Road, filme baseado nesse monumental (apesar das menos de duzentas páginas que tem na edição portuguesa da Relógio d'Água) e atmosférico livro de Cormac McCarthy. Felizmente (mas é um felizmente pequenino, assustadiço), a parte central do trailer está um pouco mais próxima do espírito do livro. Ainda assim, a que propósito surge tantas vezes a personagem de Charlize Theron (e eu adoro tanto Charlize Theron que ainda não recuperei totalmente da visão a que me sujeitei nestepost) que, no livro, é memorável mas aparece apenas em meia dúzia de páginas? E o que se passa com o aspecto glossy dos cenários? Condiz tanto com o mundo desolado e cinzento (literalmente de cinza) que McCarthy criou como um idiota envergando um fato rasgado no Carnaval se parece com um verdadeiro mendigo.
The Road é um livro imenso. Que não admite compromissos (o final não é um compromisso, é a réstia possível de esperança). Que causa pena, raiva, repulsa, incompreensão. E medo. Medo do futuro, da solidão, dos outros, do sentimento de impotência. E de ver este filme.