Começa-se sem saber bem no que vai dar. Mantêm-se imensas ilusões mas temem-se a indiferença e o desprezo, bem como a incapacidade de estar à altura da tarefa. Responde-se de forma desajeitada às primeiras - e memoráveis - pessoas que estabelecem relação. Quem chega mais tarde obtém uma realidade parcial. Tentar descobrir o que ficou para trás pode reforçar - ou fazer desvanecer - a atracção mas dá trabalho e poucos o fazem. Quase sem dados concretos elaboram-se imagens e verdades, que permanecem apesar de serem desmentidas uma e outra vez. Há quem fique pouco tempo e, desinteressado quando não desiludido, logo desapareça. Há quem se empenhe - aconselhe, critique, procure moldar - e resista durante períodos surpreendentemente longos. Há o cansaço que, de um lado e do outro, se instala e as pausas que urge introduzir. Há os erros, as hesitações, as desilusões, os entusiasmos repentinos, as discussões estimulantes e as discussões cansativas - pelo momento, pelo tom mas, acima de tudo, por já terem ocorrido inúmeras vezes. Há afinidades que se referem com frequência e ódios de estimação que também se referem com frequência mas em tom completamente diferente. Há a passagem do tempo e a ideia de que se tem afinal menos controlo, menos originalidade e menos relevância do que era suposto.
Os blogues não são a vida real mas arranjamos sempre forma de tudo parecer a vida real. Talvez por a consciência - esse factor que nos diferencia dos restantes animais - nos permitir intuir que, em grande medida, a vida real é uma ficção.
Oito páginas. Tenho oito páginas de rascunhos na área de gestão do blogue. A vinte rascunhos por página, são cento e sessenta rascunhos. Bom, cento e cinquenta e dois porque na última página só há doze. É também verdade que uns quantos estão repetidos e que vinte ou trinta contêm apenas fotografias ou vídeos musicais que, por alguma razão, não publiquei mas também não apaguei (custa-me apagar coisas). Ainda assim. É uma catrefada de textos começados e largados a meio ou acabados e deixados a definhar. E porquê? Nuns casos porque a oportunidade para a sua publicação se desvaneceu (ainda lá estão dois ou três sobre Vítor Gaspar), noutros porque perdi o ímpeto para os finalizar, na esmagadora maioria dos casos porque são uma... er... trampa. Sim, digamos trampa.
Ter tantos rascunhos poderia denotar uma criatividade espectacular. Infelizmente, não é o caso. Apenas mostra que o meu cérebro consegue produzir muito mais dejectos do que qualquer outra parte do meu corpo - como inúmeros leitores, baseando-se apenas nos textos publicados, foram certamente percebendo (há gente que exsuda perspicácia). Mais perturbador ainda: entre tantos rascunhos deveriam encontrar-se várias obras-primas. Dois, três, quatro textos tão subtis que, se publicados, a inveja levaria Pedro Mexia a arrancar cabelos e penugem facial ou tão verrinosos que Vasco Pulido Valente gaguejaria de despeito durante horas. A velha história do macaco que, posto a martelar teclas durante tempo suficiente, acaba por escrever os Lusíadas... Mas não. Decididamente, não. Não este macaco. Na melhor das hipóteses, grassa por todos aqueles textos uma ofensiva mediania. Encontram-se, os completos e os incompletos, mais ou menos ao nível deste. Razão pela qual será melhor deixá-lo também como rascunho. Será o décimo terceiro da oitava página. Daqui a uns dias, a umas semanas ou a uns anos talvez o publique. Quando tiver dezasseis páginas de rascunhos.
Acontece-me frequentemente andar com pouco tempo para escrever textos para o blogue. Se há ocasiões em que isso se conjuga com fases em que também não tenho grande vontade de o fazer, na maioria delas vou – infelizmente – tentando contornar a situação: leio uma notícia que me apetece comentar ou tenho uma ideia para um post (ou para uma série de posts: planeio três séries há meses mas nem uma me atrevi ainda a começar) e, zás, alinhavo meia dúzia de linhas. Mas, por falta de tempo, o texto fica inacabado e/ou com pormenores exigindo verificação (há por aí gente – tão irritante! – que sabe mais do que eu) e/ou à espera de links e /ou a precisar de uma boa revisão que elimine repetições vocabulares (de ideias é inevitável), excesso de adjectivos e de advérbios de modo (sou indubitavelmente especialista supremo em ambas as categorias), aliterações (senhor, como me saem sem sacrifício!) e até falhas na lógica (consigo contradizer-me várias vezes numa única frase, o que, sendo algo que me incomoda, é também algo de que me orgulho porque quase todas as versões são defensáveis e muitas vezes em simultâneo). Vou pegando no rascunho do post ao longo de vários dias, alguns minutos de cada vez, ouvindo o tiquetaque do tempo a passar e da oportunidade a esvair-se, até decidir que já não vale a pena: o assunto tornou-se tão semana passada... toda a gente o esqueceu. E, deste modo, esforço inglório a esforço inglório, o pequeno disco rígido externo que trago na pasta vai ficando cheio de posts inacabados ou, pelo menos, não publicados. Nados-mortos, no fundo. O que transforma o meu disco rígido (isto não é uma metáfora) numa espécie de cemitério de textos com deficiências: inacabados, incoerentes, constituídos por partes que não encaixam bem. E também de alguns que parecem normalzinhos e perfeitamente viáveis (têm todas as frases indispensáveis, todas as virgulazinhas, até um toque de personalidade) mas eu, que os concebi (assumo inteira responsabilidade mas, caramba, não é fácil evitar gerá-los quando o único método contraceptivo disponível é a abstinência), deixei morrer. Contudo, nisto uma mente caótica e ligeiramente macabra como a minha (o que faz com que, afinal, «disco rígido» também possa constituir uma metáfora) até seria capaz de encontrar piada: ooooooh, ando com uma data (e «data» é o termo) de cadáveres na pasta. O pior é que às vezes me ponho a relê-los e lhes encontro imenso potencial. E então sinto vergonha. Penso que fui injusto. Como pude deixar morrer aqueles textos? E depois perco todos os resquícios de bom senso, releio alguns dos posts que publiquei, acho-os péssimos e transformo-me num ser maldoso: olho para os posts sobreviventes e, qual pai de dois filhos gritando para um deles após ter perdido o outro num acidente: tu é que devias ter morrido, não o teu irmão!, acuso-os de não chegarem sequer aos calcanhares dos que se perderam pelo caminho. Atitude reprovável, eu sei, mas que não consigo evitar. De resto, hão-de convir que tenho motivos para reagir assim. Reparem neste texto. Este mesmo, cuja leitura estão prestes a terminar (parabéns pelo estoicismo). Por que raio conseguiu ser publicado?
Há um post no Delito de Opinião que apenas em parte encaixa neste blogue pacato onde pouca gente deixa comentários. Se desejarem lê-lo, dêem um salto até lá. Podem usar um dos seguintes links mas cuidado com os outros:
É quase meia-noite e parece que nos jornais, televisões e blogues ninguém conseguiu deturpar declarações de membros do governo.
Eram miúdos, sabes? Crianças dotadas como todos os adultos, mas sempre crianças. Mantinham um blogue diário, faziam-no a meias com uma certa ideia de cómico e, em simultâneo, propriedade crítica, inteligente, irónica. Umas vezes era o governo, outras vezes os comentadores na televisão; satirizavam com precisão, eram acutilantes e certeiros. Contavam com uma legião de seguidores que potenciavam os respectivos egos, por assim dizer.
Só agora é que consigo alcançar a dimensão da infantilidade das nossas vidas, das nossas opções.
Patrícia Reis, Por Este Mundo Acima.
Edição D. Quixote, 2011.
Acaba de escrever o post em que ataca Merkel e a Alemanha e recosta-se na cadeira para o reler. Antes, ajusta o ecrã do Mac. Parece-lhe bem. Forte. É inaceitável que tanta gente continue a submeter-se aos diktats do governo germânico, cujo único interesse é proteger os seus bancos e a sua indústria exportadora. A intransigente e nada solidária Alemanha prepara-se para destruir a União Europeia. O que, estando a UE vergada aos interesses do capital, devidamente protegidos pelo lacaio que lidera a Comissão, só pode ser uma coisa boa. Estamos perto, camaradas: a implosão precederá a revolução. Sorri. Puxa as pontas do colarinho da camisa Boss (um tique que não consegue evitar quando se sente merecedor de elogios), empurra para o lado o porta-chaves do BMW e usa o rato para publicar o post. Acede ao blogue para verificar se ficou bem. Está óptimo. Vai gerar imensos comentários, dar imensa luta. Boa. Luta é aquilo de que ele mais gosta. Endireita-se novamente na cadeira. Lembra-se de que ainda não acabou o post sobre a situação na Líbia, no qual acusa a NATO de ingerência e de se vergar aos interesses das companhias petrolíferas. Devia tratar do assunto antes que os idiotas dos rebeldes, apoiados pelos bombardeamentos cobardes dos franceses e dos americanos, tomem Trípoli e deixem o texto desactualizado. Parece que está por dias. Foda-se, mais um regime decente a caminho de ir pelo cano. Tem mesmo de acabar o post mas resolve que, por hoje, basta. Foi um dia péssimo (o conceito para a nova campanha do Continente não convenceu o pessoal do Belmiro) e devia era ir comer que (confirma consultando o Rolex) já passa da hora de jantar e trouxe um paté novo da loja gourmet que deve ser fantástico. Porém, em vez de se erguer, acede a um site de videojogos. O último Call of Duty: Modern Warfare sai dentro de três meses. Não se pode esquecer. Adora a adrenalina dos jogos de guerra. Pensar em tiros e explosões leva-o a começar a delinear um texto contra os Estados Unidos. Detesta a mentalidade militarista dos americanos, pá. Mas já escreveu tantos posts a cascar nos US of A que o difícil é ser original. Ainda assim, é essencial salientar como os interesses americanos se sobrepõem aos interesses da população mundial. Como os Estados Unidos constituem a pior ditadura da planeta. A única verdadeira ditadura, na realidade. Baseada nos interesses financeiros, no petróleo, na indústria do armamento. Como conseguiram implantar na cabeça das pessoas a necessidade do consumo e da posse de bens materiais. Como as fazem perder tempo com futilidades em vez de se dedicarem a coisas verdadeiramente importantes. A felicidade não passa por coisas materiais, pensa ele, enquanto sai do site de jogos e entra novamente no blogue. Nesse momento o iPhone toca. Pega-lhe. Deixou-o cair durante a tarde e repara mais uma vez que o ecrã ficou com um risco. Merda. Detesta coisas deterioradas. É Quim. Atende. «Já viste as notícias? Há confrontos nas ruas de Londres! Milhares de miúdos estão a incendiar e a partir tudo» Sente um arrepio de prazer. Caramba, pensa, enquanto acede a um site de notícias e liga o televisor com o comando, já era tempo de o pessoal explorado pelo capitalismo e excluído dos seus lucros começar a partir coisas. As notícias são espectaculares e ele vai ficando mais excitado à medida que vê as imagens. Apetece-lhe apanhar um avião para Londres e ajudar na destruição. É fundamental partir tudo o que for possível partir. O iPhone toca de novo. Que merda aquele risco, pá. Vai acabar por trocá-lo por outro, está-se mesmo a ver. «Vou a caminho», anuncia Quim. «Tinha que dar uma aula de mestrado mas telefonei a dizer que estou doente. Temos que pensar num plano de acção.» «OK, entretanto vou começar a escrever um post sobre o assunto.» Mas em vez disso passa vários minutos a acompanhar as notícias e a esfregar o ecrã do iPhone com a ponta do polegar (foda-se, é mesmo um risco, não é sujidade). Quim chega cinco minutos depois. Vem atarefado a teclar mensagens no BlackBerry. «Temos que começar uma coisa parecida por cá», explica. «Atacar a AutoEuropa ou a Sonae.» Deixa-se cair no sofá. Repara no plasma de quarenta e seis polegadas.
«É novo?»
«É.»
«Tem 3D?»
«Foda-se, não! O 3D é coisa de filmes americanos, típica da sociedade de consumo.»
Quim continua a premir as teclas do BlackBerry mas agora a um ritmo mais lento. E depois acaba mesmo por parar. Pigarreia. «Hmmmm, não sei», diz. «Essa posição parece-me um bocadinho reaccionária.»
Julio Ramón Ribeyro nasceu em Lima, no Peru, em 1929. Estudou letras e direito mas abandonou direito no último ano do curso, depois de começar a escrever. Viajou pela Europa durante a década de 50, desempenhando tarefas tão variadas como porteiro e vendedor de produtos de impressão. Voltou ao Peru em 1958 mas em 1960 fixou-se em Paris, onde trabalhou como tradutor e redactor da France Press. Foi adido cultural e embaixador peruano junto da UNESCO e regressou ao Peru de forma definitiva apenas em 1993. Menos famoso do que outros autores latino-americanos surgidos no terceiro quartel do século XX (por exemplo, o seu conterrâneo Vargas Llosa), é ainda assim reconhecido como um dos principais nomes das letras peruanas, tendo recebido em 1994, poucos dias antes de falecer, o prémio Juan Rulfo. Escreveu maioritariamente contos mas Prosas Apátridas, editado agora em Portugal pela Ahab, não é bem um livro de contos. São duzentos textos numerados, quase todos bastante curtos, que incluem aforismos, divagações e análises de acontecimentos e atitudes observados nos sítios mais variados. Por exemplo, no número 57 pode ler-se: As únicas pessoas civilizadas da praia de Albufeira são estes campónios que às vezes descem das suas quintas de figueiras e amendoeiras, trajados de negro sob um sol abrasador, com a sua estranha maneira de usar o chapéu, muito descaído sobre os olhos e levantado na nuca, e que ficam a apreciar em silêncio, um tanto espantados, mas com dignidade e indulgência e sabedoria, os turistas que, disfarçados de rãs, esfolados vivos na soalheira, embrulhados nas suas toalhas, lubrificados como armas de fogo, desembarcaram de veículos rolantes vindos do Norte e agora rebolam alegremente na areia, lendo Die Welt, The Times, Le Monde e introduzindo, sem se aperceberem, nesse espaço belíssimo, os primeiros sinais da barbárie. Isto terá sido escrito na década de setenta do século passado e serviu-me de grande conforto. Primeiro, porque corpos «lubrificados como armas de fogo» é uma imagem que ficará comigo para sempre e que me fará olhar de outra forma para praias sobrelotadas já nos próximos meses. Depois, porque o texto demonstra que a degradação do Algarve como, decerto, todas as restantes degradações portuguesas, foi afinal culpa de estrangeiros (atente-se, logo à cabeça, na referência aos alemães – e aos alemães conservadores, ainda por cima – através do Die Welt). Tivessem os estrangeiros ficado a tomar banho no Báltico ou no Canal da Mancha, o Algarve ainda seria um paraíso e nós continuaríamos, cheios de estilo, a usar roupa preta e chapéus tombados sobre os olhos.
Julio Ramón Ribeyro, Prosas Apátridas.
Edição Ahab (2011), tradução de Tiago Szabo.
E aqui estão, exactamente como os deixámos, livros, jornais e discos, e maços de cartas, e embrulhos, revistas e manuscritos. É impossível ter a correspondência em dia. Oscar Wilde dizia ter conhecido um jovem promissor que se arruinara com o vício de responder a cartas. Não me é possível ver todo este amontoado de papéis, mais os dois ou três livros que chegam todos os dias.
Saul Bellow, Jerusalém - Ida e Volta.
Edição Tinta-da-China (2011), tradução de Raquel Moura.
Hoje já não se escrevem cartas. Escrevem-se mensagens de telemóvel e de correio electrónico, posts e comentários. O vício são os blogues, o Facebook e o Twitter. Quantos jovens promissores se arruinarão andando por aqui?
O modo de campanha eleitoral em que este blogue se encontra é temporário. E, apesar do ponto não constar do acordo de entendimento com a «troika», antes das eleições ainda havemos de falar de livros e de ideias estúpidas que surgem no meu cérebro.
Que brilhante plano teria eu na cabeça quando escrevi no caderninho onde anoto ideias para posts e outras coisas igualmente fundamentais para a felicidade global a frase «As mulheres são capazes dos actos mais revoltantes...»? Tão seguro de que bastava para me fazer recordar o objectivo que até me permiti deixá-la pendurada em reticências.
E que acontecimento me terá levado a escrevê-la?
É melhor começar a cortar no queijo.
Simples: blogues que mantêm caixas de comentários abertas mas depois censuram os comentários que recebem, ainda que não incluam insultos nem liguagem agressiva, não me merecem consideração.
«É sabido que toda a gente que põe em causa a versão oficial o faz acefalamente. Já as pessoas que batem palmas e gritam vivas em pavilhões de Matosinhos fazem-no após aturado trabalho mental.»
«Aquele post que pus no blogue sobre o volume das emoções é mesmo muito estúpido, não é?»
«Nem por isso. Tens lá piores.»
Ok, o escafandro resistiu. Ainda assim, o desgaste é evidente e o prazo de validade aproxima-se do fim. Enquanto a vida me passava em frente aos olhos (a viseira deu jeito; era como estar a ver televisão) percebi várias coisas, entre as quais onde coloquei uma embalagem de preservativos que tanta falta me fez em 1988 e que não cheguei a insultar neste blogue alguns grupos e tendências. Voltei, pois, com o intuito de corrigir a situação (a segunda, que para a primeira já é um pouco tarde). Ainda hoje: «Por que são cada vez mais feias as pessoas bonitas». Mais tarde na semana: «Desvendando as razões científicas que tornam as pessoas pequenas tão irritantes».
Este blogue acabou.
Tudo o que escrevo aqui é verdade. Até as mentiras.
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