como sobreviver submerso.
Que os bancos aceitassem avaliações optimistas para poderem conceder montantes superiores de crédito à habitação deveria ser problema deles. Que PSD e CDS
tenham recuado na legislação que permitiria saldar a dívida com a entrega do imóvel é uma injustiça e um erro político – os tempos não estão para favores aos banqueiros.
Como outras grandes empresas, os bancos nacionais gastaram nos últimos anos dezenas ou centenas de milhares de euros a delinear «planos de continuidade do negócio». É irónico como tiveram o cuidado de prever a possibilidade de incêndios, terramotos, ataques à bomba ou através de vírus informáticos mas nenhum conseguiu antever os riscos inerentes ao próprio negócio (por exemplo, os relacionados com o excesso de crédito concedido ou com a falta de qualidade dos títulos adquiridos). Mas, enfim, a nossa especialidade sempre foi pensar no acessório. Agora que
os prejuízos chegaram, só posso recomendar aos banqueiros nacionais, esses expoentes da economia e da gestão, que lhes apreciem devidamente o sabor – poderão achá-lo um tudo-nada ácido mas experiências novas, ainda para mais em idades já avançaditas, são sempre de valorizar. E, para bem de todos (deles e nosso), esperemos que não tenham de engolir muito pior.
De entre os banqueiros nacionais, Ulrich é o que menos urticária me provoca, por ter começado a emitir alertas quando os colegas ainda elogiavam Sócrates e a política de obras públicas. Mas uma declaração destas não pode ficar sem comentário. "Risk free"? Que raio de banqueiros são estes que acham ter direito a produtos sem risco? Nunca nada é "risk free" (já agora, o inglês dispensava-se). "Risk free" para os bancos significa a pagar pelos contribuintes.
Pacheco Pereira afirmou no programa
Quadratura do Círculo desta semana que Pedro Passos Coelho não devia ter acedido a receber os banqueiros. Concordo. É verdade que,
a acreditar no jornal Sol (segundo o qual três bancos podem ir «ao fundo»), eles estão desesperados e não podiam correr o risco de Passos Coelho passar ao lado da gravidade da situação. Mas Passos Coelho é líder do maior partido da oposição, possível futuro Primeiro-Ministro e não devia arriscar-se a que as suas decisões fiquem desde já ligadas aos mesmos banqueiros que, precisamente por interesses próprios de curto prazo, colaboraram na definição do percurso que nos trouxe à situação actual.
Vamos por passos (no pun intended): em teoria, se as medidas implementadas por um qualquer governo incentivam os agentes económicos a adoptar políticas que acabam por se revelar inadequadas e mesmo perigosas, a responsabilidade deve ser exigida apenas a esse governo, uma vez que as empresas tendem a seguir os estímulos que lhes maximizam o lucro imediato e não vale a pena perder tempo a esperar o contrário. (É em grande medida devido a esta cupidez – inteiramente humana, note-se, excepto para os muitos teóricos Rousseaunianos que por aí andam – que é indispensável a existência de entidades reguladoras fortes, credíveis e independentes, com a missão de garantir o funcionamento adequado do sistema no presente e salvaguardar o futuro.) Passando a um nível mais concreto: se um governo tem uma política que privilegia as obras públicas e os sectores não transaccionáveis da economia, é natural que os bancos se dediquem a financiar preferencialmente a construção dessas obras ou os projectos ligados a esses sectores, uma vez que o risco é menor – no primeiro caso, directa ou indirectamente empresta-se ao Estado e este, como constatamos hoje, tem formas coercivas de arranjar dinheiro; no segundo, as garantias de sustentabilidade dos projectos são maiores. O governo português teve uma política deste tipo e os bancos portugueses agiram precisamente desta forma. O problema é que em Portugal se formou uma tríade entre quem decide (o governo), quem financia (os bancos) e quem constrói e gere (as empresas de construção civil e de gestão de infraestruturas) que não permite assacar responsabilidades apenas ao governo. As construtoras e as empresas gestoras (concessionárias de autoestradas, de pontes, de hospitais, etc.) querem as obras públicas porque vivem delas; os partidos querem financiamento e postos bem remunerados para os seus acólitos; os bancos adoram projectos de farto lucro e módico risco; as construtoras devem milhões de euros aos bancos que, para garantirem o retorno do dinheiro, precisam de assegurar a sua viabilidade; os governos estão cheios de pessoal vindo dos bancos; as empresas construtoras têm participações accionistas nas empresas gestoras e nos bancos, que por sua vez têm participações accionistas naquelas. Em resultado desta rede de interesses cruzados, há muito que os projectos de investimento são decididos mais em função dos interesses de curto prazo das partes (normalmente coincidentes) do que do interesse nacional, por muitas palavras bonitas que José Sócrates, António Mota ou Ricardo Salgado profiram em entrevistas e colóquios. Para agravar a situação, o sistema de justiça nacional foi paulatina e talvez propositadamente destruído e as entidades reguladoras também não funcionam, no todo ou em parte por terem sido tomadas de assalto por gente tão independente dos universos político e financeiro como um viciado em heroína o é do seu dealer (aposto que nunca antes alguém tinha comparado Constâncio a um viciado em heroína e Santos Ferreira a um dealer). É por isto que ver os banqueiros armarem-se em pessoas isentas e credíveis me causa urticária (Ulrich, um pouco menos, porque foi o único com coragem suficiente para ir lançando alguns alertas). É também por isto que considero inconcebível que, mais ou menos às claras e sob o guarda-chuva do «interesse nacional», tentem desde já começar a manobrar as decisões do PSD – o que, para mal dos nossos pecados, não deverá ser difícil, estando os dois principais partidos portugueses tradicionalmente ansiosos por serem manobrados. Desconheço se a repartição de responsabilidade entre governo, empresas e banqueiros é um terço para cada parte, se é cinquenta por cento para o governo, trinta para as empresas e vinte para os bancos, se é noventa-dez-dez ou se é qualquer outra. Mas sei que os banqueiros não estão isentos de responsabilidade. E que, por isso, deviam manter-se discretos. Por muitas razões que tenham para estar preocupados. E todos nós também.