como sobreviver submerso.

Sábado, 23 de Maio de 2009
O brilho das estrelas.

Há um par de dias mostraram-me, numa dessas revistas que nem embrulhar peixe merecem (Caras? Vip? Outra do mesmo estilo?), fotos de Julia Roberts em bikini, numa praia qualquer. O título do artigo era algo do género “Julia Roberts como nunca a viu”. As fotos mostravam uma Roberts com um corpo longe da perfeição: pregas de gordura na zona abdominal, indícios de celulite nas coxas. Para além das questões de privacidade (obviamente, as fotos não haviam sido autorizadas), especialmente pertinentes com uma actriz que nunca expôs a sua vida privada frente às câmaras, o que repugna no artigo é a assumpção de que mostrar como as estrelas são mulheres normais serve propósitos de informação útil. Serve apenas para satisfação mesquinha de outras mulheres. (Com algumas infelizes excepções, os homens andam muito menos preocupados com as rugas do Clooney ou com a com a gordura do Di Caprio).

 
O erro é presumir que as estrelas são gente normal. As estrelas não apresentam defeitos físicos – antes características físicas. Às vezes têm rugas, como Annette Benning em Open Range. Outras vezes são feias, como George Clooney em O Brother, Where Art Thou?. Têm peso a mais, como Marilyn Monroe em muitos filmes em que entrou ou Robert de Niro em Raging Bull e The Untouchables. São assumidamente idosas como Judi Dench ou Anthony Hopkins o são há muitos anos. Mas, repito, estes não são defeitos, antes características. Porque, apesar de nesta era muitos espectadores acharem que têm direito à proximidade, à informação detalhada, ao conhecimento dos mais ínfimos pormenores pessoais, e muitas publicações existirem apenas para lhes alimentar as pulsões vampirescas, as estrelas cinematográficas não são pessoas. São imagens, projecções (projecções num ecrã e projecções de desejos, amores, ódios de quem as vê), mistérios.
 
As tais pessoas e publicações insistem em dizer – e mostrar – que há humanos por trás das estrelas. Será eventualmente verdade. Terão então todas as qualidades e defeitos dos restantes humanos. Serão por vezes estúpidos, terão mau hálito ao acordar, nem sempre estarão em boa forma física. Who cares? As mamas de Julia Roberts são as de Erin Brockovich. As falhas de Marilyn foram as visíveis em Some Like It Hot ou no ácido e pungente The Misfits (ou, vá lá, na canção de parabéns a Kennedy). A pessoa por trás da estrela pode entrever-se nas entrevistas que dá, nas aparições que tem, e, mais ainda, nas escolhas de trabalho que faz. Mas este é a verdadeira realidade e impõe-se, mesmo podendo ser influenciado pelo que acontece na vida privada. Qualquer pessoa que ame cinema deseja e simultaneamente teme encontrar uma estrela na vida real. Porque, na vida real, elas não existem. Existem outras pessoas, com pontos de contacto mas ainda assim diferentes. Menos reais. Com necessidade de garantir fasquias absurdamente elevadas. Quase sempre condenadas a falhar.
 
Como João Bénard da Costa nos deixou na quinta-feira (precisamente no dia em que me mostraram as fotos), fui reler algumas das crónicas que ele escreveu n’O Independente sob o título “Muito lá de casa” e depois publicou em livro com o mesmo nome. As estrelas dele são de outra época, onde a vida pessoal era um pouco mais pessoal e, por isso, o brilho era o das fotos de estúdio, da iluminação dos sets, e dos actos e diálogos dos filmes, e não era tão poluído por fotos indignas em revistas sem ética. A dada altura, ele escreveu mesmo que já não havia estrelas (foi há quase 20 anos e abria duas excepções: Kathleen Turner e Isabella Rosselini). De facto, a galáxia cinematográfica encontra-se poluída por muitos detritos sem luz própria, que apenas tentam reflectir os holofotes que lhes apontam. (Só um exemplo óbvio: mas quem é Paris Hilton?) Ainda assim, só se não o permitirmos, caro Bénard.
 
Termino com citações de crónicas dele (todas presentes no livro referido), porque escreveu sobre o que faz das estrelas, estrelas, muito melhor que eu seria capaz de o fazer.
 
Sobre Joan Crawford: “Que idade tinha Joan Crawford quando fez de Vienna? Se for verdade que nasceu a 23 de Março de 1904 – ninguém julga pela veracidade – estaria muito perto dos 50. O Johnny dela – Sterling Hayden – era doze anos mais novo. Dá-se por isso no filme? Só quem também reparar que a cascata não bate certo. Não os invejo. Aquela mulher não tem idade, tem tempo. Nenhuma idade e todo o tempo. E só comparando a memória de Vienna com a memória de outras Crawford – 20 ou 30 anos antes – reparamos como aumentaram os olhos e a boca, como o oval se dissolveu nos ângulos, como os ombros entregaram ostentação à cara. Não é como Marlene, um milagre de conservação, é um milagre de transfiguração.”
 
Sobre Audrey Hepburn: “Vi-a ontem pela última vez. Vivia num céu de giestas. Era uma criatura celestial, chamava-se Hep e dizia a Richard Dreyfuss que anything you do for yourself now is a waste of spirit. Só que o dela, aos 60 anos, parecia mais luminoso que nunca, coberto por outras cores flamengas (azuis dourados e poentes).”
 
Sobre Marilyn: “É fácil ser adivinho de coisas que já aconteceram. Quando hoje vemos os filmes de Marilyn, faz parte de nós o saber que essa mulher morreu há trinta e um anos, com 36. Mas julgo que não é só isso. Puxando pela memória (minha e de tantos, que a viram, a amaram, se apaixonaram por ela, quando Marilyn ainda estava viva e ninguém sabia que por tão pouco tempo), essa imagem da morte já a acompanhava. Há gente assim, os seres que não são deste mundo, de que falava Régio. Olhamos para eles como numa passagem de nível sem guarda, sabendo que faltam poucos minutos para o comboio passar e que (como nos pesadelos) não podemos gritar-lhes que se afastem. O comboio já vem aí e todo o tempo que os olhamos é o tempo da morte a vir.”
 
Sobre James Mason: “A 8 de Maio de 1984, convidei-o a vir a Lisboa, por ocasião de um ciclo de cinema britânico. Ficou de dar resposta definitiva em Julho. It would be very nice to find myself again in the Gulbenkian Museum.
Quando esperava essa resposta – já decorria o ciclo – abri um jornal e li a notícia da morte dele. Nessa noite passaram na cinamateca The Man in Grey e Thunder Rock (O Farol das Ilusões), realizado por Roy Boulting, em 1942. Quem viu esse filme – tantas vezes passado nas velhas terças-feiras clássicas do Tivoli – lembrar-se-á que os vivos se misturavam com os mortos, entre os afogamentos do naufrágio.
Lembrei-me então que já tinha visto James Mason morrer afogado noutro filme. Esse sublime plano de A Star is Born, em que se atira para o mar. O cinema é uma coisa e a vida é outra? Não mo digam.”

 



publicado por José António Abreu às 16:58
link do post | comentar | favorito

Quinta-feira, 21 de Maio de 2009
Muito lá de casa.

Morreu João Bénard da Costa. Será recordado por ter sido director da Cinemateca mas também pelas passagens pela Gulbenkian e pela Escola Superior de Cinema do Conservatório Nacional, pelos livros que escreveu ou até pelas crónicas de viagem. Eu recordo-o como uma das principais razões para ler O Independente, onde escreveu páginas absolutamente sublimes sobre filmes, actores e especialmente actrizes. Será acima de tudo lembrado como parecendo estar permanentemente enlevado por um filme, um realizador, um actor ou – mais uma vez – especialmente uma actriz. Das várias que se poderiam referir, fiquemo-nos por Joan Crawford, no seu amado Johnny Guitar.

 

 



publicado por José António Abreu às 10:04
link do post | comentar | favorito

dentro do escafandro.
pesquisar
 
Janeiro 2019
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5

6
7
8
9
10
11
12

13
14
15
16
18
19

20
21
22
23
24
25
26

27
28
29
30
31


à tona

O brilho das estrelas.

Muito lá de casa.

reservas de oxigénio
tags

actualidade

antónio costa

blogues

cães e gatos

cinema

crise

das formas e cores

desporto

diário semifictício

divagações

douro

economia

eleições

empresas

europa

ficção

fotografia

fotos

governo

grécia

homens

humor

imagens pelas ruas

literatura

livros

metafísica do ciberespaço

mulheres

música

música recente

notícias

paisagens bucólicas

política

porto

portugal

ps

sócrates

televisão

viagens

vida

vídeos

todas as tags

favoritos

(2) Personagens de Romanc...

O avençado mental

Uma cripta em Praga

Escada rolante, elevador,...

Bisontes

Furgoneta

Trovoadas

A minha paixão por uma se...

Amor e malas de senhora

O orgasmo lírico

condutas submersas
subscrever feeds