como sobreviver submerso.

Domingo, 30 de Agosto de 2009
Progresso

A estrada não é larga mas dispõe de bom piso. Num dos lados e em plano superior, tem a companhia de uma auto-estrada. No outro existe uma malha de salinas abandonadas, agora apenas pequenos lagos com águas cinzentas de cuja superfície espreitam tufos de vegetação. Paro o carro na berma. Há pouco espaço disponível e quase metade fica no asfalto. Não é grave: a estrada tem pouco movimento e a recta permite boa visibilidade. Pego na máquina fotográfica e saio. Os veículos na auto-estrada passam tão depressa que se ouve mais a deslocação do ar que o ruído dos motores. Atravesso a estreita tira de asfalto até à berma junto à água. O desnível faz-me hesitar. Quero impedir que a linha de vegetação junto à estrada apareça nas fotos mas, se escorregar, mergulharei, fato, gravata e câmara, nas águas mortiças meio metro mais abaixo. Acabo por não arriscar. Tiro três ou quatro fotos, usando o zoom para variar o enquadramento. Depois ergo a câmara acima da cabeça e, enquadrando às cegas, tiro mais algumas. Uma carrinha de caixa aberta abranda para passar entre mim e o meu carro. Sinto os olhos do condutor nas minhas costas mas resisto à vontade de olhar para trás. Baixo os braços e permito-me então observar a carrinha que se afasta. Caminho ao longo da estrada no mesmo sentido que ela seguiu enquanto verifico as fotos: algumas provocam-me trejeitos de embaraço e apago-as de imediato. A uma vintena de metros do carro tiro mais duas ou três mas já com pouca convicção. Regresso ao carro. Guardo a máquina, coloco o motor em funcionamento e arranco em direcção ao Porto.

 

Foi há cerca de quatro anos, num fim de tarde com sol e nuvens de trovoada. Lembrei-me recentemente da imagem porque já não é possível repeti-la. O novo acesso ao Porto de Aveiro obrigou à destruição da pequena casa de apoio às salinas, cada vez mais, elas próprias, uma recordação histórica. E o viaduto, suspenso vários metros acima do nível da água, tem – sejamos caridosos – uma fotogenia totalmente diferente. Creio que se pode dizer que o progresso passou por cima deste pequeno charco, como quer passar por cima de outros. O progresso é implacável.



publicado por José António Abreu às 14:59
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