Os contratos que a Argentina subscreveu antes de, em 2001, entrar em incumprimento incluíam:
- Uma cláusula garantindo que todos os credores têm os mesmos direitos (cláusula pari passu);
- Uma cláusula estabelecendo que qualquer conflito seria resolvido nos tribunais de Nova Iorque.
Em contrapartida, não incluíam:
- Uma cláusula que forçasse a totalidade dos credores a aceitar as condições negociadas em caso de reestruturação da dívida, desde que um determinado número as aceitasse (em inglês, collective action clause).
Muito embora esteja a desempenhar um papel importante na situação actual (já lá vamos), a primeira cláusula é, pelo que leio, habitual. A segunda faz com que a questão jurídica não pertença, como o Luís Naves defende, ao «direito argentino» - por escolha da Argentina, à época desejosa de obter credibilidade junto dos financiadores, após décadas de governação laxista e inflação galopante. A terceira, ou melhor, a sua inexistência é, no entanto, o erro mais grave, tendo aberto a porta aos problemas – e aos especuladores. Provavelmente o governo argentino prescindiu dela pela mesma razão que aceitou a jurisdição dos tribunais nova-iorquinos: sinal de confiança. Ou então fê-lo por incompetência ou – pior – por interesses ocultos. Seja como for, foi uma decisão com consequências graves. Após entrar em incumprimento, a Argentina chegou a acordo com a maioria dos credores mas não com todos. O Fundo Elliot Management, que entretanto comprara dívida argentina a preço de saldo, recorreu para a Justiça – em Nova Iorque, como os contratos previam. O que o tribunal veio dizer é que os credores que não aceitaram a reestruturação têm efectivamente direito aos montantes previstos nos contratos originais e que, não estando eles a ser ressarcidos, os restantes também não o podem ser (por causa da primeira cláusula). Esta decisão deixa a Argentina bloqueada e sem alternativas: se pagar os montantes originais ao Elliot Management, arrisca-se a ser processada pelos outros credores – e, quase certamente, a perder (de novo por causa da primeira cláusula).
Feito o ponto da situação, voltemos à necessidade de regulação. Em que consistiria ela afinal? Dever-se-ia limitar a venda de títulos no mercado secundário, de modo a evitar que caíssem na mão de entidades que pudessem tentar fazer valer os contratos assinados? Estabelecer-se-iam limites máximos para o lucro? (Mesmo nos casos em que ele é monumental apenas porque alguém – o detentor anterior dos títulos – encaixou uma perda quase do mesmo valor?) Obrigar-se-ia a que todos os contratos incluíssem a cláusula de acção colectiva? (Será válida em todos os regimes jurídicos? E que percentagem se imporia? 90%? 70%? 51%? Para punir mesmo a sério os credores ambiciosos, talvez nem devesse ser necessário atingir-se o acordo com os detentores da maioria dos créditos: que tal 20%? Ou 5%, um valor que qualquer governo poderia facilmente garantir estarem em mãos amigas?) Outra hipótese seria agir do lado do fornecedor do bem que mantém o vício em vez de agir do lado do viciado: que tal proibir que os governos emitam dívida adicional quando os seus países se encontram acima de determinados patamares de endividamento? Sendo inegável que os grandes capitalistas são frequentemente abutres (à escala do poder e dinheiro que detêm, quase todos os humanos são), contas públicas equilibradas evitam que se lhes caia nas garras de forma muito mais eficaz do que quaisquer normas regulatórias.
Nota 2: Mesmo sem este imbróglio jurídico, a situação da economia argentina não seria brilhante. Recuperada a autonomia do peso, mantiveram-se as políticas de sempre, baseadas na injecção de dinheiro - que rapidamente perde valor, fazendo disparar a taxa de inflação (ou as taxas de inflação, uma vez que a oficial costuma ser pouco credível). Ainda assim, trata-se da receita que muita gente parece desejar aplicar em Portugal.
Argentina is once again at the centre of an emerging-market crisis. This one can be blamed on the incompetence of the president, Cristina Fernández, but she is merely the latest in a succession of economically illiterate populists, stretching back to Juan and Eva (Evita) Perón, and before. The Chilean and Uruguayans, the locals Argentines used to look down on, are now richer. Children from both those countries – and Brazil and Mexico too – do better in international education tests.
[…]
On Europe’s southern fringe, both government and business have avoided reality with Argentine disdain. Italy’s petulant demand that rating agencies should take into account its “cultural wealth”, instead of looking too closely at its dodgy government finances, sounded like Ms. Fernández. The European Union protects Spain or Greece from spiralling off into autarky. But what if the euro zone broke up?
The Economist, número saído hoje.
Nada que assuste os populistas de esquerda, tão activos como os de direita mas com muito melhor imprensa. Das duas, uma: como a Sra. Fernández e, um pouco mais a norte, o Sr. Maduro, não vêem os riscos ou estão mesmo convencidos (e iludidos) de que será possível forçar parte da Europa a cobrir-lhes a demagogia.
(Para que conste, no final de 2012 escrevi: Em 2013 continuará a discutir-se por cá a relação custo/benefício do euro. Na Argentina continuará a discutir-se a relação custo/benefício da inflação.)
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