Surgido pela primeira no dia 27 de Julho de 1940, em The Wild Hare, do genial Tex Avery, com uma aparência ainda longe daquela com que ficaria mais conhecido mas já com voz (e sotaque nova-iorquino) do polifónico Mel Blanc, Bugs Bunny fez ontem 75 anos. Mordaz, senhor do seu nariz e da sua cenoura, raramente vencido, é um dos meus heróis desde a época dos programas televisivos de Vasco Granja. O tempo, contudo, trouxe-me uma perplexidade: para coelho, e apesar de um outro flirt ao longo da carreira, Bugs interessou-se surpreendentemente pouco pelo sexo oposto (admita-se: existem humanos, lá pela Califórnia e noutros sítios, com maior fixação em coelhinhas do que ele) e deixou pouquíssima descendência.
Adenda: A última vez que Mel Blanc lhe cedeu a voz foi em 1988, no filme da Disney Quem Tramou Roger Rabbit?, realizado por Robert Zemeckis. De modo a permitir o uso de Bugs, a Warner exigiu que ele estivesse no ecrã pelo menos tanto tempo como o rato Mickey. Zemeckis foi mais longe. Não somente lhes concedeu o mesmo tempo de exposição (enfim, tudo cronometrado, Mickey deve ganhar por quase um segundo) como os fez partilhar a mesma cena. Nela, Bugs e Mickey caem lado a lado de pára-quedas, fornecendo a Eddie Valiant - excelente Bob Hoskins - um «sobresselente» que não constitui grande ajuda. O que salva Valiant (como tantos homens) é a paixão de uma mulher.
Ontem fui cortar o cabelo. Corto-o na terra onde nasci e onde os meus pais ainda vivem, num barbeiro tradicional – por hábito de décadas, falta de paciência para locais cujos donos julgam alcandorar-se a níveis monegascos de sofisticação fazendo luzir sobre a porta designações mais na moda («barbeiro» é termo não só antiquado como pobrezinho, capaz de suscitar em pessoas modernas imagens do período salazarista) e nenhuma predisposição para aceitar promessas vãs (salão de beleza? No que me diz respeito, nem com manipulação genética). O meu barbeiro tem uma hérnia e deve ser operado este mês. Já foi operado há cerca de um ano mas a hérnia reapareceu, desta feita um pouco mais abaixo, encostadinha aos testículos (ele desce a esses pormenores). Tem sessenta e dois anos e está admirado por isto lhe ter acontecido já depois dos sessenta. Um amigo havia-o convencido de que, passada incólume a fase dos quarenta e cinco aos sessenta, os homens estão livres de problemas sérios até aos setenta. «E é verdade», garantia o meu barbeiro enquanto me cortava o cabelo. «A quantidade de pessoas que a gente vê morrer de repente entre os quarenta e cinco e os sessenta... AVCs, ataques cardíacos... Está-se bem num momento e morto no seguinte. Vistas as coisas por esse lado, uma hérnia, mesmo com as dores horríveis que provoca, não é grave. Quando só este ano já morreu tanta gente mais nova, que era aqui cliente, inclusivamente. Conhecia o Manel, da loja de materiais de construção?»
Vinte e cinco minutos, durou o quase monólogo do meu barbeiro, satisfeito por poder contar-me tudo sobre a hérnia que lhe está a chegar aos testículos e elucidar-me com detalhe e exemplos abundantes sobre os riscos acrescidos enfrentados pelos homens na faixa dos quarenta e cinco aos sessenta anos de idade. Podia tê-lo mandado calar mas não quis estragar-lhe o desabafo. De resto, ele lá sabia que hoje eu chegava aos quarenta e cinco anos.
Dizem que dois é bom. Mas não deixa de ser um número estúpido para se comemorar sozinho.
E, a propósito, já muito depois do intervalo o marcador indica os seguintes resultados:
Vida: 325, morte: 10;
Política: 245, humor: 191;
Sócrates: 85, Passos Coelho + Manuela Ferreira Leite + Paulo Portas: 16; (Napoleão:1);
Governo: 27, estado da nação: 2;
PSD: 22, cães e gatos: 16;
Corrupção: 4, justiça: 8;
Portugal: 176, Alemanha: 8;
Patagónia: 0, Tasmânia: 1;
Literatura: 101, música: 107;
Cinema: 22, televisão: 19;
Ténis: 24, futebol: 13;
Língua portuguesa: 7, blogues: 31;
Fotos: 168, viagens: 25;
Porto: 34, Lisboa: 5; (Berlim: 9);
Agosto: 4, Dezembro: 0;
Impostos: 3, descontos: 1;
Notícias: 33, felicidade: 2;
Realidade: 0, ficção: 30;
Automóveis: 7, bicicletas: 0;
Jesus: 1, Zeus: 1; (Alá: 0);
Mulheres: 36, homens: 24;
Gordos: 1, magros: 0;
Lindsey Vonn: 1, Roger Federer: 7;
Maria Filomena Mónica: 1, Maria João Bastos: 3;
Tina Fey: 1, Elisa Ferreira: 3;
Sexo: 21, crise: 41;
Pénis: 2, vaginas: 0;
Divagações: 43, auto-retratos: 1;
Nem tudo é mau mas há aqui resultados sem qualquer correspondência com a realidade e prioridades vergonhosamente erradas.
De Excertos dos Diários de Adão e Eva, edição Cavalo de Ferro, tradução de Hugo Freitas Xavier:
Excertos do Diário de Adão
Segunda-Feira: Este novo ser de cabelo comprido é um valente empecilho. Anda sempre à minha volta e segue-me para todo o lado. Não gosto disto; não estou habituado a ter companhia. Preferia que ficasse com os outros animais. (…) Está enevoado hoje, vento de Este; acho que nós ainda vamos ter chuva. (…) NÓS? Onde apanhei esta palavra – o novo ser usa-a amiúde.
Terça-Feira: Estive a examinar a cascata. É o melhor do parque, penso. O novo ser chama-lhe “Catarata do Niagara” – porquê, não compreendo. Diz que parece a Catarata do Niagara. Isso não é razão. É um mero devaneio e uma imbecilidade. Não posso nunca dar nome a nada. O novo ser dá nome a tudo o que aparece antes de eu poder esboçar um protesto. E o pretexto é sempre o mesmo: parece ser aquilo. Por exemplo um dodo, diz que, logo que se avista um, percebe-se que «parece um dodo». Vai ter de passar a chamar-se assim, sem dúvida. Desgasta-me tentar discutir sobre isso e nem vale a pena, de qualquer maneira. Dodo! Parece-se tanto com um dodo como eu!
Diário de Eva
Sábado: Tenho quase um dia de idade. Cheguei ontem, pelo menos é o que me parece. E deve ter sido assim porque se houve um dia antes-de-ontem, eu não estava cá quando aconteceu senão lembrar-me-ia. Pode ter-se dado o caso de ter acontecido e que eu não tenha reparado. Muito bem, vou estar muito atenta a partir de agora e se algum dia antes-de-ontem aconteceu, vou tomar nota dele. É melhor começar já para que este registo não fique confuso. Até porque o meu instinto diz-me que estes dados vão ser importantes para algum historiador no futuro. Porque eu sinto-me como uma espécie de experiência. Sinto-me exactamente como uma experiência; é impossível alguém sentir-se mais uma experiência do que eu, por isso começo a suspeitar que é isso que sou – uma experiência, só uma experiência, nada mais que uma experiência.
Mas se eu sou uma experiência, será que eu sou toda a experiência? Acho que não. Sou a maior parte dela mas acho que o restante da experiência também tem voto na matéria. Será que a minha posição é segura ou terei de estar atenta e protegê-la? Inclino-me mais para a segunda hipótese. Um instinto dita-me que a eterna vigilância é o preço da supremacia. (Boa frase para alguém tão novo, não?)
Etc, etc, etc, que a mulher não se cala. (Isto não é de Twain; é uma intervenção minha, motivada pela exaustão.)
Semana Seguinte, Domingo: Durante toda a semana segui-o e tentei travar conhecimento. Tive de ser eu a falar porque ele é tímido, mas isso não me chateia. Ele parecia contente por me ter por ali e eu fartei-me de usar o socializante «nós» porque isso parecia deixá-lo orgulhoso por estar incluído em alguma coisa.
A relação entre Adão e Eva lá vai andando aos solavancos (o aparecimento de Caim é hilariante) até eles chegarem à conclusão (bem, até Adão chegar à conclusão, que Eva soube-o desde o início) de que – e no caso deles não é uma forma de expressão – foram feitos um para o outro. A última frase:
Na Campa de Eva; Adão: Onde quer que ela estivesse era o Éden.
Saber que a mulher de Twain morrera pouco tempo antes de ele escrever O Diário de Eva dá novas cambiantes ao sorriso que a frase provoca. E só nos faz ter ainda mais apreço pelo homem. E pela mulher.
You don’t know about me, without you have read a book by the name of “The Adventures of Tom Sawyer,” but that ain’t no matter. The book was made by Mr. Mark Twain, and he told the truth, mainly. There was things which he stretched, but mainly he told the truth. That is nothing. I never seen anybody but lied, one time or another, without it was Aunt Polly, or the widow, or maybe Mary. Aunt Polly – Tom’s Aunt Polly, she is – and Mary, and the Widow Douglas, is all told about in that book – which is mostly a true book; with some stretchers, as I said before.
Mark Twain, Adventures of Huckleberry Finn
Idolatro poucas pessoas com bigode mas Samuel Langhorne Clemens é uma delas. A maioria (como em «todos») dos meus colegas de escola tomou contacto com As Aventuras de Tom Sawyer pela série televisiva de animação. Eu ainda não sentia orgulho de ter lido primeiro o livro mas agora sinto. Requisitei-o na Biblioteca Municipal lá da terrinha (que me permitiu ler a maioria do Salgari, do Verne, e algumas coisas menos conhecidas da Enid Blyton) e devorei-o sob um feitiço encantatório. Li depois As Aventuras de Huckleberry Finn, recolhidas no mesmo local, mas, porque o jovem desejoso de aventura que eu era ainda não apreciava a subtileza das grandes questões, achei-o menos interessante. Nada mais li de Twain durante muitos anos mas o nome ficou-me como uma referência de aventura, justiça e humor. Soube depois que a impressão estava certa. Li sobre a irreverência, o apoio aos movimentos sufragista e anti-esclavagista, a forma como assumiu sempre as posições que entendia correctas, não tendo problemas em admitir que foi mudando algumas ao longo da vida, o gosto pela ciência e os esforços que fez, apesar de não estar legalmente obrigado a fazê-los, para pagar as dívidas contraídas na tentativa de desenvolvimento de uma máquina que acabou oboleta antes de alguma vez funcionar convenientemente. Afinal, A man cannot be confortable without his own approval e Always do right. This will gratify some people and astonish the rest. Como nem toda a gente tem o mesmo espírito, ainda hoje Huck Finn está banido de muitas escolas e bibliotecas americanas. Hoje, que se completam cem anos sobre a morte de Twain.
Bom dia. Dentro de poucas horas completaremos a primeira volta ao Sol. É favor não estranhar se parte da paisagem perder o efeito de novidade. As reservas de oxigénio já estiveram melhor mas ainda não se encontram em níveis preocupantes. Obrigado.
Astérix faz hoje cinquenta anos. Para ser sincero, nunca me pareceu ter menos. Não comprei qualquer dos livros saídos depois da morte de Goscinny e já não leio os que tenho há muitos anos mas o simples nome é suficiente para me suscitar um sorriso ao lembrar as gargalhadas da juventude. Para celebrar o aniversário há um novo álbum que parece não ser mau. Mas leio que, de há uns tempos a esta parte, alguns dos nomes originais foram «aportuguesados». E não de forma subtil. Assuranceturix passou a Cacofonix e – custa-me até escrevê-lo – o chefe Abraracourcix a Matasétix. A noção do ridículo anda pelas ruas da amargura e a tendência para eliminar qualquer possibilidade de mistério e estranheza (no fundo, de uso do cérebro) continua em alta. Transformámos os irredutíveis e orgulhosos gauleses em personagens de Os Malucos do Riso.
(Imagens retiradas do site oficial.)
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