como sobreviver submerso.
O meu primeiro contacto com a literatura nórdica foi no sétimo ano de escolaridade. Ignorando olimpicamente o programa durante um par de semanas (isso hoje não seria motivo de expulsão?), a professora de português leu a uma turma assarapantada (e pôs uns quantos de nós a ler em voz alta) alguns capítulos de A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson Através da Suécia, de Selma Lagerlöf. Resultou estranhamente bem: talvez pela primeira vez estivemos atentos e alguns (bom, talvez eu e uma miúda que recordo como girinha e irritantemente inteligente) até protestaram quando ela deixou de trazer o livro e regressou aos temas do programa. Para mim, Lagerlöf (a primeira mulher a receber o Nobel da Literatura) adquiriu nessa altura uma aura que leituras posteriores apenas reforçaram (estão disponíveis em Portugal vários livros dela, sendo as edições mais recentes da Cavalo de Ferro).
Desde então li outros escritores nórdicos e, nos últimos tempos, descobri mesmo na Noruega dois autores que entraram para a lista (é verdade que dilatada) dos meus escritores contemporâneos favoritos: Lars Saabye Christensen (Herman, Beatles, Meio-Irmão) e Per Petterson (Cavalos Roubados). Confesso que não conhecia Paasilinna antes de ver o livro na Fnac. O título e a capa chamaram-me a atenção (não apenas pelas razões mais evidentes mas também – quão infantil se pode ser? – porque «Vatanen», para mim, significa «piloto de ralis» e isso é suficiente para me fazer olhar).
O Vatanen do livro é um jornalista «com cerca de quarenta anos», classificado logo na primeira página como «cínico» e «infeliz». Numa viagem de carro de regresso a Helsínquia, no início do Verão de 1975, Vatanen e o fotógrafo que o acompanha atropelam uma lebre. Vatanen sai do carro e vai atrás dela. Encontra-a com uma pata partida e, depois de lhe colocar uma tala improvisada, decide embrenhar-se na floresta com ela, abandonando o irritado e confuso fotógrafo. A partir daqui o livro é uma sucessão de equívocos. Vatanan vai encontrar todo o género de personagens, das mais normais às mais excêntricas (e, no entanto, as teorias aparentemente absurdas de uma ou outra talvez venham a revelar-se úteis) e, em grande medida por causa da lebre, enfrentar a curiosidade, a cobiça e a ira alheias. De entre as vicissitudes que terá de enfrentar contam-se exigências burocráticas (afinal, não pode andar com uma lebre no bolso sem uma autorização oficial), a perseguição que lhe é movida pela mulher (que já não o ama mas não gostou de ser abandonada sem uma explicação), incêndios florestais, um irado condutor de uma máquina florestal que não sabe nadar, exercícios militares encenados para entretenimento de altos dignatários estrangeiros, uma rapariga de quem ele não se lembra mas da qual parece ser íntimo, e um insistente urso que o força a uma perseguição que acaba do lado errado da fronteira com a União Soviética. E, durante tudo isto (e de mais), Vatanen mantém uma impassibilidade que o torna quase uma personagem de Beckett: um homem que não procura sarilhos mas capaz de atrair todo o tipo de problemas, estranho (ou genial) para os que com ele se cruzam. Esta sensação é reforçada pelo estilo de escrita de Paasilinna, seco e factual, com pontos de contacto (a falta de ornamentação excessiva) com o dos outros nórdicos que referi mas também com diferenças claras, a maior das quais é a fuga de Paasilinna a qualquer demonstração de sentimentalismo. Isso torna o livro ligeiramente frio mas, acima de tudo, bastante desconcertante. Esta fuga ao sentimentalismo é também visível na forma como Paasilinna aborda a relação do homem com a Natureza. Vatanen foge das cidades e da vida que elas representam mas não hesita em perseguir o urso com a firme intenção de o matar ou em congeminar uma solução cruel (que deixará adoentado qualquer ecologista digno do termo) para lidar com um corvo que lhe rouba comida. A Lebre de Vatanen é um apelo ao regresso à Natureza (ou talvez um lamento pela forma como o homem a vem abandonando e subalternizando aos seus interesses) mas numa relação não-paternalista, genuína, de integração e de luta. É um livro estanho. Com humor. Talvez. Depende do leitor.
A Lebre de Vatanen, de Arto Paasilinna.
Edição Relógio d'Água, tradução de Carlos Correia Monteiro de Oliveira.
(A Relógio d’Água tem previsto o lançamento de Aprazível Suicídio Em Grupo, outro livro de Paasilinna com uma premissa fabulosa: um grupo de finlandeses com tendências suicidas – afinal não são os nórdicos especialistas no assunto? – mete-se num autocarro e atravessa a Europa em busca do lugar perfeito para se suicidarem. Parece que acabam em Portugal. Faz sentido. Devíamos usar a ideia numa campanha publicitária internacional.)