como sobreviver submerso.

Sexta-feira, 23 de Outubro de 2009
Planeta Oscar Wao

Não sei se em alguma das muitas críticas escritas nos últimos meses acerca de A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao alguém usou o trocadilho. Se ninguém o fez, foi por pudor de ser tão óbvio. Eu não o tenho. Uau.

 
À primeira vista, a história de Oscar não é assim tão extraordinária. É apenas um miúdo bestialmente gordo, com uma atracção tão grande por raparigas quanto a repulsa que elas sentem por ele, apaixonado por banda desenhada de ficção científica, fantasia e super-heróis (existirá alguma rapariga algures no planeta que aprecie rapazes interessados em banda desenhada de super-heróis?), que vai passar a sua breve vida entre a República Dominicana e os Estados Unidos. Porquê a República Dominicana? Porque Oscar é dominicano. E isso faz toda a diferença. Desde logo, um dominicano que não tem jeito para conquistar raparigas é visto como uma verdadeira aberração pelos outros dominicanos, familiares de Oscar incluídos. Depois, a história da família de Oscar – e, por conseguinte, a dele – parece decorrer sob o signo do fukú, «a maldição e a condenação do Novo Mundo». Numa espécie de pecado original, «acredita-se que a chegada dos Espanhóis a Hispaniola* soltou o fukú no mundo, e temos todos estado enterrados na merda desde essa altura». A história da República Dominicana abunda com exemplos de fukú mas as gerações imediatamente anteriores à de Oscar tiveram de enfrentar um período em que ele se mostrou particularmente activo: a ditadura militar de Leónidas Trujillo, «El Jefe, o Ladrão de Gado Falhado e o Cara de Cu». (Mario Vargas Llosa abordou o período no excelente e sufocante A Festa do Chibo mas o narrador de A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao acha que ele foi magnânimo, pelo menos no que respeita a uma das personagens ligadas ao regime.) Na verdade, «ninguém sabe se Trujillo era um servidor da maldição ou o seu mestre, um seu agente ou o seu chefe, mas era evidente que ele e ela tinham um qualquer tipo de entendimento, que havia um empate entre os dois». E é no ambiente do Trujillismo, com o fukú à solta no país, que a história da família de Oscar é contada, em capítulos intercalados com os que contam a história do próprio Oscar. Porque, apesar de Trujillo já estar morto quando Beli, a mãe de Oscar, é forçada a trocar a República Dominicana pelos Estados Unidos e durante toda a vida de Oscar, tudo tem a ver com uma mentalidade que Trujillo encarnava na perfeição: a dos homens «machos» (tão mais «machos» quanto o poder que possuem e os capangas que têm à disposição), violentos, que não aceitam afrontas, reais ou imaginadas. É num mundo assim que todas as histórias se desenrolam. A do avô de Oscar, um médico bem instalado na vida que arrisca tudo na tentativa de proteger a filha mais velha da cobiça de Trujillo. A da mãe de Oscar, uma rapariga atraente («pulposa» talvez fosse mais visual e mais correcto) que se envolve com o homem errado. E a do próprio Oscar, provavelmente o dominicano menos de acordo com esta ideia de «macho» que já pisou Hispaniola. A parte «assombrosa» da vida de Oscar está precisamente nesta incongruência e no desafio (consciente, teimoso) que, na parte final do livro, faz ao fukú, em nome de algo que julgara impossível durante tantos anos. Adivinhem quem vence.
 
Junot Díaz é dominicano e andou onze anos a escrever o livro. Considerando toda violência que incluiu (os campos de cana de açúcar nunca mais serão vistos da mesma maneira), poderia ter escrito um livro sério, pesado, deprimente. A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao é tudo menos isso. É um livro escrito num estilo leve e irónico, onde a tragédia se cruza com a hilariedade. Onde a violência é encarada com a naturalidade de um traço familiar, inato e inevitável. Como a melancolia portuguesa, a rigidez britânica ou o espalhafato italiano.
 
E, porque mais vale acabar com um sorriso, um excerto que relata os esforços do companheiro de quarto de Oscar na universidade para conseguir que Oscar emagreça (um companheiro contrariado, que, como bom dominicano, está a ajudar Oscar apenas por lhe querer conquistar a irmã): «Não consigo mentir: das primeiras vezes, quase me parti a rir vendo-o a bufar, todo chateado, pela George Street abaixo, aqueles joelhos negros como carvão todos a tremerem. Mantendo a cabeça baixa para não ter de ouvir ou ver todas aquelas reacções. Habitualmente, apenas algumas casquinadas e algum extraviado bucha. A melhor que ouvi? Olha, mamã, aquele tipo está a levar o seu planeta a dar uma corrida.» O planeta Oscar Wao. Onde vivem todos os rapazes gordos, tímidos e desajeitados, todas as pessoas que os gozam e maltratam, mas também todas aquelas que eles amariam com devoção se lhes fosse dada oportunidade.
 
* Ilha que compreende a República Dominicana e o Haiti. O livro é muito claro sobre o «carinho» que os dominicanos sentem pelos haitianos. Trujillo destestava-os e, em 1938, ordenou um ataque fronteiriço que terá morto entre 20 mil e 30 mil haitianos. Como é sabido, o Haiti responderia à ditadura dominicana com uma quase tão «simpática», liderada por «Papa Doc» Duvalier. (Esta nota tem uma finalidade: A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao está cheio de notas de rodapé neste estilo. Só que com mais piada.)
 

A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao, de Junot Díaz.

Porto Editora, tradução de Victor Cabral.



publicado por José António Abreu às 23:00
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