Dir-me-ão que posso escrever textos como este. Sim, resta a liberdade. É a liberdade que eu agradeço ao 25 de Abril. Ciente de que muitos dos que o fizeram – ou dele se apropriaram – não a tinham como objectivo. Ciente de que, assentes no poder da captação e alocação dos recursos e das noções do politicamente correcto – como antes o Estado Novo se servia da Igreja, da noção de moral e do conceito de Pátria –, os seus descendentes agem para que seja cada vez mais difícil escrevê-los.
Pois, pois... É óptimo o dia 25 de Abril este ano calhar a uma sexta-feira mas isso só quer dizer que, no próximo, calhará a um sábado.
Agradeço aos capitães de Abril algo que vários não tinham real intenção de me dar: liberdade. Liberdade até para, fugindo de endeusamentos pró-forma, afirmar que a posição deles quanto às políticas actuais me é totalmente indiferente. Não lhes reconheço capacidade analítica bastante para emitirem outra coisa que não opiniões de treinador de bancada. (Exactamente: como as minhas.) De resto, ao longo de dezenas de anos, não lhes ouvi desejos de palanques oficiais onde pudessem criticar as políticas que conduziram o país à bancarrota (pelo contrário, pareceram sempre apoiá-las e até achá-las insuficientes). Assente este ponto, a Assembleia bem os poderia ter deixado falar. Por um lado, como no caso das declarações quase diárias de vultos do passado recente, carregados de responsabilidades mas incapazes de se remeterem ao silêncio, muito menos de efectuarem um mea culpa (Mário Soares, Jorge Sampaio, José Sócrates, Teixeira dos Santos, Bagão Félix, ...), críticas fáceis embrulhadas em lirismo de pacotilha têm eficácia limitada (mas os políticos assustam-se facilmente e, ao fazê-lo, geram quase sempre efeitos contraproducentes). Por outro, o regime actual deveria fazer questão de mostrar a cada oportunidade que é infinitamente mais aberto à crítica do que o regime desejado por alguns dos capitães teria sido.
O 25 de Abril também permitiu a liberdade de não ter que se estar onde não se deseja estar.
Filho de vários pais célebres (não existindo à época testes de ADN, nunca se conseguiu restringir a paternidade a apenas um), o 25 de Abril, com 36 anos completados há dois dias, é por seu turno pai de bastantes filhos, uns de sangue, outros adoptados. De entre estes, há muitos que ele nunca pensara recolher mas que, por bondade ou inércia, não expulsou quando lhe apareceram em casa tratando-o por «pai». Os filhos do 25 de Abril cresceram sem controlo. A maioria anda hoje por aí em gangues, gozando com a cara dos restantes portugueses e extorquindo-lhes dinheiro. Autodenominam-se os «sindicalistas», os «gestores públicos», os «artistas», os «funcionários públicos», os «detentores de direitos adquiridos». Quando alguém os tenta enfrentar colocam-se em bicos dos pés, enchem o peito de ar, avançam o queixo, e perguntam em tom agressivo: «Sabes quem é o meu pai?»
Em pleno dia 25 de Abril, a RTP decidiu abrir o noticiário da noite com uma não-notícia futebolística: o Benfica ainda não é campeão. Por favor, privatizem-na.
É sintomático constatar como, dentro e fora do Parlamento, o discurso mais imobilista, mais carregado do desejo de não mudar o que quer que seja, tentando ao mesmo tempo parecer querer mudar tudo, é hoje feito pelos socialistas.
P: Sente que se perdeu ou desaproveitou a luz que emanou da Revolução do 25 de Abril?
R: Absolutamente. Logo em 1975. Nessa altura, houve oportunidade para curar alguns atavismos históricos. Mas o país foi entregue às mesmas pessoas que já cá andavam e que procederam das formas habituais, no cruzamento de pequena venalidade e corrupção. As oportunidades começaram a perder-se com este estado de coisas. Provavelmente, não vamos sair daqui tão cedo.
Mário de Carvalho, em entrevista ao Jornal de Letras.
Aprecio imenso a capacidade que Mário de Carvalho tem para expor o lado ridículo dos portugueses (e, ainda assim, manter uma considerável dose de carinho no processo) mas esta é, primeiro, apenas parte da questão, e depois, uma continuação da visão romântica de que em 1974 se esteve à beira de construir uma sociedade perfeita.
É verdade que muitos dos grandes grupos económicos voltaram às mãos de quem os possuía antes de 1974. Mas isso sucedeu no final da década de 80, não em 1975. Nos quinze anos de intervalo, o Estado controlou directamente amplos sectores da economia e nunca conseguiu colocá-los a funcionar bem. E basta ver como, ainda hoje, a Caixa Geral de Depósitos é usada, para perceber os malefícios de ter os políticos do partido dominante (qualquer que ele seja no momento) controlando grandes empresas (já nem falo dos golden boys da PT ou do BCP). Mas poderá Mário de Carvalho estar a desejar outra solução, em que o Estado não ficava com as empresas mas as entregava a empresários «novos», escolhidos cuidadosamente, ou – sei lá – às comissões de trabalhadores? Alguém acredita que estas soluções teriam originado empresas viáveis e evitado a promiscuidade entre elas e o Estado? Na realidade, a única solução que poderia ter diminuído as ligações entre o Estado e as empresas era tê-las entregue a grupos estrangeiros (exemplo significativo: o Santander Totta aparece muito menos enredado nas águas sujas da política portuguesa do que alguns baluartes da finança nacional), mas mesmo isso nada garantiria, para além de criar outro tipo de riscos.
Embora não me custe admitir a tacanhez, a miopia, o hábito de fazer negócio como de costume, em discretos gabinetes, com troca de favores e olhos no curto prazo, de muita da gente que controla – e, em vários casos, já controlava antes de 1974 – os grandes grupos económicos nacionais, a verdade é que essas tácticas só resultam porque os políticos (alguns dos quais enchem a boca com o «25 de Abril») estão disponíveis para entrar no jogo. Antes do 25 de Abril, os grandes grupos influenciavam um Estado tacanho e autoritário; actualmente, manobram um Estado deslumbrado e esbanjador. Para mais, este tipo de comportamento não se limita aos grandes grupos: as pequenas empresas de construção civil relacionam-se com o poder local de modo similar àquele que gere as relações entre as grandes empresas de construção civil e o Estado Central. Infelizmente, o problema está na mentalidade geral, que aceita e promove o favorzinho, a cunha, a excepção, e nos políticos que, tendo interesse pessoal e partidário em manter o status quo (a omnipresença do Estado assegura benesses e financiamentos, para além de lhes permitir sentirem-se importantes), recusam perder a capacidade de participar no jogo económico (vide golden shares). É por isso que, nos tais quinze anos ou nos últimos vinte, nunca foi criada verdadeira concorrência em alguns sectores nem foram criados mecanismos de controlo e fiscalização eficazes. As instituições até podem existir (o Tribunal de Contas, por exemplo) mas são incapazes de produzir resultados consequentes. Portugal não possui um verdadeiro sistema de checks and balances, e institui-lo é que devia ter sido uma das principais preocupações nos anos que se seguiram à revolução. Mas, claro, a esquerda, dominante à época, dominante hoje, não tinha nem tem qualquer vontade de o fazer. A esquerda acredita que a intervenção estatal é sempre benéfica e não deve ter limites.
No que se refere à sociedade perfeita, nunca ninguém em lugar algum do planeta a atingiu. E os que terão chegado lá mais perto não o fizeram com um Estado baseado na anarquia, nem com um Estado baseado na «colectivização» da propriedade, nem com um Estado onde a corrupção, a arrogância, a mentira, e a megalomania imperassem. Na realidade, pensar que estivemos lá perto em 1974 é hoje mais prejudicial do que útil, porque nos impõe um referencial totalmente ultrapassado. Portugal não necessita de utopias (de esquerda, como as que ficam subentendidas nas palavras de Mário de Carvalho ou nos discursos do PC e do BE, ou de direita, como as que os saudosistas do Salazarismo pregam em cafés e bancos de jardim). Precisa de racionalidade. Precisa de perceber que o Estado é hoje o principal problema do país e que, portanto, tem de emagrecer e deixar a economia respirar. Há por aí muitos «empresários» (dos que já cá andavam e dos que aprenderam a andar) que, habituados a viver encostados a ele, não gostam da ideia. Como não gostam dela a maioria dos funcionários públicos e todas as pessoas que, mesmo nutrindo sonhos de grandeza, preferem a mediocridade ao risco. Acenar a esta gente com as «promessas de Abril», como se, por si, as palavras alterassem alguma coisa, é apenas mais um sinal da hipocrisia dos políticos nacionais. Mário de Carvalho tem, no entanto, toda a razão na última frase da resposta que deu ao Jornal de Letras: provavelmente, não vamos sair daqui tão cedo.
Com sol e uma cabra a pastar tranquilamente dentro do perímetro, é estranho pensar que, nos anos que se seguiram à abertura do campo (em Outubro de 1936), por aqui passaram 340 presos, que 32 aqui morreram, e que este local ficou conhecido como o "Campo da Morte Lenta". Mas isso aconteceu. E hoje, 25 de Abril, por entre comemorações que, para muitos, já não têm a importância de outrora (quanto mais não seja por questões de idade), é importante mencionar este e outros factos. Como evocação e aviso.
pessoais
Amor e Morte em Pequenas Doses
blogues
O MacGuffin (Contra a Corrente)
blogues sobre livros
blogues sobre fotografia
blogues sobre música
blogues de repórteres
leituras
cinema
fotografia
música
jogos de vídeo
automóveis
desporto
gadgets