Há uns tempos, li algures que Leoš Janáček ocupa o terceiro lugar na lista de preferências dos checos no que respeita a compositores de música clássica nacionais, a longa distância de Smetana e Dvořák (sendo que aparentemente Smetana é o preferido). Sem querer entrar em comparações (acho fantástico que um país tão pequeno tenha produzido três compositores de tal calibre), parte da explicação para o relativo desapego dos checos poderá residir na circunstância de Janáček ter passado quase toda a vida em Brno e não em Praga, num esforço contínuo mas, durante muitos anos, falhado para se fazer aceitar nos meios artísticos da capital (onde a partir de certa altura contou com a ajuda do mesmo Max Brod que era amigo e divulgador de Kafka), outra parte talvez no facto de ter escrito obras menos imediatas do que os outros dois e desfasadas dos gostos predominantes: tendo vivido grande parte da vida em plena época do romantismo, Janáček recusava-o. Numa fase inicial, isso levou-o a produzir música de um classicismo banal (isto é, que soava antiquada); mas depois, já por volta dos cinquenta anos de idade, descobriu um caminho próprio e inovador (o que não deixa de ser inesperado; quase todos os artistas são mais ousados na juventude) que, indo buscar a várias fontes, apresentava uma depuração extraordinária: as emoções não eram forçadas pela acumulação de notas, por transições e efeitos (como nas composições românticas) mas pela beleza de nenhuma nota estar a mais, das transições serem bruscas, dos efeitos terem de ser acrescentados por quem ouve.(Numa analogia grosseira, fez um pouco o que Hemingway faria na literatura poucos anos depois.) Compôs então excelentes obras orquestrais (Sinfonietta, Tarass Bulba), vocais (Missa Glagolítica) e, especialmente, operáticas. Janáček é autor de nove óperas, cinco das quais se contam indubitavelmente entre as mais importantes do século XX: Jenůfa (que, demonstração eloquente da resistência da intelligentsia de Praga, apenas foi levada à cena na capital treze anos depois de ter sido escrita e com várias alterações introduzidas pelo maestro do Teatro Nacional), Káťa Kabanová (o meu primeiro contacto com a música dele), Příhody lišky Bystroušky (A Raposa Mateira – por improvável que seja, não consigo deixar de imaginar que Aquilino se terá inspirado nela para criar a Salta-Pocinhas, nascida cinco anos mais tarde), Věc Makropulos (O Caso Makroupolos) e Z mrtvého domu (Da Casa dos Mortos, completada dias antes da própria morte). Tratam-se de obras-primas obras-primas absolutas, que o elevam à companhia de Strauss, de Berg, de Britten – e talvez de mais ninguém (não estou a esquecer-me de Schönberg, estou só a assumir uma preferência). E que tornam ainda mais estranho que os checos não o tenham apreciado devidamente porque revelam uma enorme paixão pela língua checa. Para transmitir o estado psicológico das personagens de forma precisa, sem as tais notas desnecessárias, Janáček dava tremenda importância à língua e à forma como uma mesma palavra pode transmitir diferentes emoções consoante o modo como é pronunciada. Tanta que escrevia os seus próprios librettos e, ao morrer, deixou grande parte dos bens à universidade de Brno para financiar estudos linguísticos. Mas talvez esta paixão pela língua o tenha prejudicado. O processo de internacionalização da sua música, que ocorreu antes de atingir a notoriedade no seu próprio país (não é só por cá que o reconhecimento no estrangeiro leva as pessoas a prestar atenção), terá sido prejudicado por ela. De facto, só ocorreu quando Max Brod lhe traduziu as óperas para alemão. E percebe-se porquê: quando se ouve uma ópera de Janáček pela primeira vez (e mesmo durante os primeiros minutos de cada uma das ocasiões seguintes), é difícil não estranhar os sons que saem dos lábios dos cantores. À língua italiana, à francesa, à alemã, os públicos europeus estavam (e estão) habituados. À língua checa, não. Para mais, na altura não havia legendagem sobre o palco. Porém, a tradução também não resolvia tudo. Em Os Testamentos Traídos (ASA, 1994, tradução de Miguel Serras Pereira), Kundera explica o problema de modo perfeito:
Dificuldade prática insolúvel: nas obras de Janacek, o condão do canto não reside apenas na beleza melódica, mas também no sentido psicológico (sentido sempre inesperado) que a melodia confere não globalmente a uma cena mas a cada frase, a cada palavra cantada. Mas como cantar em Berlim ou em Paris? Se for em checo […], o ouvinte apenas ouve sílabas vazias de sentido e não compreende as finuras psicológicas presentes em cada inflexão melódica. Traduzir então, como foi o caso no começo da carreira internacional destas óperas? É também problemático: a língua francesa, por exemplo, não toleraria a tónica posta na primeira sílaba das palavras checas, e a mesma entoação adquiriria em francês um sentido psicológico inteiramente diferente.
(Há qualquer coisa de pungente, senão de trágico no facto de Janacek ter concentrado a maior parte das suas forças inovadoras precisamente na ópera, pondo-se assim à mercê do público burguês mais conservador que possa imaginar. Além disso, a sua inovação reside numa revalorização nunca vista da palavra cantada, o que quer dizer in concreto da palavra checa, incompreensível em 99% dos teatros do mundo. Difícil é imaginar uma maior acumulação voluntária de obstáculos. As suas óperas são a mais bela homenagem alguma vez prestada à língua checa. Homenagem? Sim. Sobre a forma de sacrifício. Ele imolou a sua música universal a uma língua quase desconhecida.)
Neste livro (que reli agora, depois de o ter lido pela primeira vez quando saiu, e de onde, de certo modo, retirei grande parte deste post), Kundera faz uma extraordinária apologia da música de Janáček. A ironia – e como é adequado que ela exista, tratando-se de um escritor para quem a ironia assume contornos tão sérios – é Kundera ter recusado imolar-se no mesmo altar. Exilado em Paris, adoptou a nacionalidade francesa e passou a escrever em francês. Pelo que não talvez surpreenda que os checos mantenham sentimentos ambivalentes a seu respeito. Mas Janáček não o merecia.
Nas cartas dirigidas a Flaubert, muitas delas de uma sã crueza de linguagem, Maupassant mostra-se orgulhoso da sua virilidade excepcional e chega a confessar-se farto de sodomizar judias!... A resposta foi simples: «experimenta pelo lado tradicional e pode ser que o teu tédio desapareça».
João Costa, no prefácio a As Sobrinhas da Viúva do Coronel, de Guy de Maupassant, Bertrand, 2007.
Será possível acharmos que vivemos numa época especialmente sexual – isto é, em que se faz mais sexo do que noutros tempos e de formas mais criativas? A década de sessenta, com a libertação feminina, o amor livre, o make love not war e o sex, drugs and rock ‘n’ roll, bem como a representação cada vez mais displicente (e inconsequente) do acto sexual na televisão e no cinema terão provavelmente contribuído para tal sensação. Mas corresponderá ela à realidade? Infelizmente, sendo, por um lado, os inquéritos sobre a frequência e os hábitos sexuais o que eram nos séculos anteriores ao último (inexistentes talvez seja o termo que procuro) e, por outro, os humanos (especialmente se possuidores de um cromossoma Y) propensos a mentir quando questionados sobre estas matérias, não é fácil ter certezas. Mas julgo podermos afastar desde já a hipótese de sermos mais criativos. Se as confissões de Maupassant, afloradas acima (e confesso tê-las usado essencialmente para vos chamar a atenção), não constituem grande indicador, há milhares de outras fontes onde podemos constatar que, basicamente, nos limitámos a melhorar alguns acessórios recorrendo à electricidade, à injecção de plásticos e aos circuitos integrados. Mas e a questão da frequência? O mesmo Maupassant terá possuído numa só hora, perante uma testemunha, seis mulheres num bordel parisiense. Mas relações envolvendo troca de dinheiro dificilmente representam a realidade ou a sensibilidade de uma época. Por outro lado, convém evitar dar excessivo crédito a declarações de machos com tendência para o priapismo – ou para a gabarolice. É por esta razão que os relatos do divino Marquês de Sade também não nos servem para caracterizar o que quer que seja. Podíamos ainda recorrer à Bíblia, que nos fala de Sodoma e Gomorra, ou a relatos gregos e romanos mencionando bacanais mas continua a ser difícil fazer comparações com os tempos actuais (como determinar se Calígula participava em mais ou menos orgias do que José Castelo Branco?). De resto, talvez seja melhor atermo-nos aos tempos e às regiões de influência cristã. Então, como fazer? Eu digo-vos: buscando na ficção não erótica de diferentes épocas a ideia que os autores transmitem sobre o que representa ter muitas relações sexuais. Claro que não obteremos o número de relações em que uma pessoa média se envolvia mas pelo menos obteremos uma noção do que era considerado excessivo. Sendo isto um post de blogue (necessariamente curtinho e to the point), vou limitar-me a um par de exemplos totalmente aleatórios e, dessa forma, estou em crer que totalmente representativos.
Comecemos pela actualidade e por uma série televisiva intitulada How I Met Your Mother ou, na versão portuguesa, Foi Assim Que Aconteceu. Nesta série, Barney Stinson, um awesome (definição do próprio) jovem mulherengo nova-iorquino com cerca de trinta anos, tem relações sexuais com a duocentésima mulher diferente durante a quarta temporada. Já perto do final da quinta, refere que a contagem vai em quase duzentas e oitenta (o que revela um considerável aumento de ritmo). Temos então que, de acordo com a mentalidade actual, fazer sexo com quase trezentas mulheres é mais do que suficiente para que um tipo de trinta e tal anos possa considerar-se (e ser considerado) um engatatão de primeira classe. Se Barney tiver iniciado a vida sexual aos quinze, isto dá uma média de catorze ou quinze mulheres por ano. Razoável, de facto, pelo menos quando comparado com a minha estatística pessoal – mas eu tendo a esquecer-me das coisas.
Antes de recuarmos no tempo e colocarmos à prova as façanhas de Barney Stinson convém explicar que toda a lógica deste post se aplica aos homens. E não por uma questão de machismo, pelo menos da minha parte. Apenas porque, no que respeita às mulheres, não há qualquer dúvida. Convenhamos que discutir o número a partir do qual uma mulher era classificada como – er, conquistadora nem sequer é o termo, pois não?... promíscua, então? – há um par de séculos não é mais do que escolher entre os algarismos um, dois e três, consoante se tratasse de um mulher solteira, casada pela primeira vez ou casada pela segunda vez após morte do primeiro marido. Felizmente, hoje a situação é bastante diferente (felizmente também para os homens, que têm – dizem-me – menores dificuldades em arranjar sexo barato). Ainda assim, sinto-me forçado a salientar que, décadas depois da tal «revolução sexual» dos anos sessenta, continua a notar-se uma diferencita no valor considerado excessivo para homens e para mulheres. Lembram-se da cena, em Quatro Casamentos e Um Funeral (de 1994, mas creio que ainda razoavelmente representativo) na qual a personagem interpretada por Andie MacDowell enumerava os amantes que tivera? Ela apenas chegou a trinta e qualquer coisa mas terminou corada de vergonha e, diante dela, a personagem interpretada por Hugh Grant começava a entrar em estado de choque. Ou seja, trinta e qualquer coisa parceiros sexuais já são demasiados para uma mulher de trinta e qualquer coisa anos mas quase trezentas parceiras sexuais ainda não embaraçam um homem de trinta e qualquer coisa anos (pelo contrário, ele continua a sorrir, orgulhoso).
In Italia seicento e quaranta;
In Alemagna duecento trentuna;
Cento in Francia, in Turchia novantuna;
Ma in Ispagna son già mille e tre.
Passando sobre a desfeita de Don Giovanni ter ignorado as mulheres portuguesas (porquê, João, porquê?), somem os números e chegarão a – prontos? – duas mil e sessenta e cinco conquistas sexuais. Ora Don Giovanni teria apenas vinte e dois anos de idade. Considerando uma vida sexual de sete anos, obtém-se a astronómica média de duzentas e noventa e cinco mulheres diferentes por ano. O que são, comparadas com isto, as catorze de Barney Stinson? A conclusão é dolorosa mas inevitável: a menos que na televisão actual se exagere afinal muito pouco, vai-se a ver e ainda temos muito que... muito que… ainda temos muito sexo a fazer.
Primeiro Acto.
Ontem à noite. Abro com gestos largos uma encomenda da Amazon que, entre outras coisas, inclui umas óperas em blu-ray (excelente forma de ver ópera ou bailado, deixem que vos diga). Verifico com espanto e horror que o Don Giovanni dentro da caixa é em DVD. Praguejo três vezes, na minha voz de barítono (com – é um efeito fantástico – uns laivos de falsetto). Pela listagem inclusa, confirmo que encomendara a versão em blu-ray. Ainda que o erro não seja meu, praguejo mais três vezes para reforçar a ideia de que não estou satisfeito. Ponho o DVD de lado juntamente com a listagem de itens encomendados decidido a tratar da devolução hoje pela manhã. Vou jantar.
Segundo Acto.
A meio da manhã trato do pedido de substituição. As coisas correm bem – no site da Amazon está tudo pensado para que o cliente sofra o mínimo de incómodo possível. Imprimo os formulários: uma folha para meter dentro da embalagem de retorno, um rótulo de correio registado dos CTT, um comprovativo. Não é preciso pagar portes. À hora de almoço vou a uma estação de correios. Compro um envelope almofadado, meto o DVD lá dentro juntamente com a folha adequada, a senhora que me atende cola o rótulo ao envelope com fita-cola, carimba a folha de recibo e cobra-me noventa e cinco cêntimos pelo envelope (a Amazon dizia para usar a embalagem original mas é demasiado grande). Vou almoçar.
Terceiro Acto.
Às duas e tal verifico que chegou uma mensagem da Amazon. Pedem desculpa, referem que já estão a tratar do envio da versão em blu-ray e dizem-me que, atendendo aos custos da devolução, posso ficar com a versão em DVD. Sugerem que a ofereça para beneficência mas isto só leio mais tarde porque já estou saindo a correr para a estação de correios. Pelo caminho, praguejo mais seis vezes. É que, não sei se estão a ver, a Amazon dava-me trinta dias (trinta!) para fazer a devolução. Por que diabos tive de tratar do assunto logo no primeiro? Chego a arfar. Tiro uma senha. Faltam seis números para a minha vez. Nada mau. O pior é quando um funcionário com um grande saco ao ombro sai em direcção a uma carrinha estacionada na rua. Fixo o olhar no saco com tanta intensidade que fico certo de não ter nascido em Krypton (em miúdo cheguei a ter esperanças). Pondero abordá-lo e obrigá-lo a abrir o saco mas contenho-me e deixo-o ir embora na carrinha. Chega a minha vez. Explico o que se passou. A funcionária que me atende fala com a que me atendeu antes (está mesmo ao lado, com outro cliente). Ela lembra-se de mim (modéstia à parte, lembram-se sempre) mas, com um trejeito de horror típico de ópera buffa (mas mais na linha de Rossini do que de Mozart) exclama: «Ah, não sei se ainda cá está!». Levanta-se e vai remexer num cesto. Sorri. Mostra o envelope na mão erguida. Anuncia: «Eccolo qui!» (Talvez tenha sido em português, já não estou certo.) Apetece-me saltar o balcão e dar-lhe um beijo (até porque é gira). Ela despacha o outro cliente e depois trata de mim (será impressão minha ou isto não soa bem?). Abandono os correios com o envelope na mão prometendo a mim próprio ser menos eficiente no futuro. Considero a hipótese de ir lanchar mas é demasiado cedo.
E agora, em que instituição de solidariedade apreciarão Mozart?
Efectivamente, nada de especial para os dias de hoje. Parece que o crítico do Pravda achou que a ópera se detinha em questões menores, sentimentais, e não focava os importantes desígnios das massas oprimidas. (Na altura, essa era uma falha grave.) Mas ainda assim… Afinal, a coisa até se passa nos tempos czaristas, pelo que (pensava provavelmente Shostakovich) esses defeitos cairiam sobre o antigo regime. (Os grandes artistas são com frequência um pouco ingénuos.) No que me toca, presumo que o homenzinho do bigode farfalhudo possa ter-se sentido incomodado pela cena em que Sergei se impõe a Ekaterina, no que começa por ser uma violação e acaba num orgasmo lírico e orquestral. Ou pela cena em que o sogro de Ekaterina dá a entender que também não se importava de lhe manter os pés quentes durante a noite. Ou pelas cenas da morte do sogro e do marido de Ekaterina, o primeiro envenenado com cogumelos enquanto os trabalhadores da quinta cantam alegremente, o segundo atingido na cabeça com um candelabro enquanto é estrangulado (métodos de execução pífios que ninguém estranhará poderem desagradar ao homenzinho do bigode farfalhudo). Ou até pela cena 7 (ficou famosa), passada na esquadra da polícia e onde os agentes surgem como mandriões, bêbados e corruptos.
É difícil ter a certeza. Eu gosto da ópera. Gosto dela toda e gosto especialmente de pequenos nacos de diálogo como estes:
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