Capítulo 3
Revolução
Foi em meados de Outubro, e o duende barbudo havia de dizer que fazia todo o sentido ter sido naquela altura. O dia amanheceu com uns amenos vinte e três graus negativos, mas soprava um vento fresco vindo de Sul (no Pólo Norte o vento vem sempre do Sul e tende a criar remoinhos) que se metia pela gola das camisolas e arrefecia o nariz e a ponta das orelhas. O Pai Natal despediu-se da Mãe Natal com um beijo e um mau pressentimento. Ela disse: «Põe o gorro e não comas porcarias.» No Pólo Norte, havia poucos legumes e vegetais, mas ela dizia sempre aquilo.
Ao chegar à fábrica, o Pai Natal descobriu que pouco mais de uma dúzia de duendes comparecera ao trabalho. Tentou parecer bem disposto, esboçou mesmo um «ho-ho-ho» que saiu pouco convincente, e, porque não valia a pena dizer-lhes para irem trabalhar (faltava muita gente essencial para operar as máquinas e, de resto, quantos brinquedos poderia fazer aquele conjunto de gatos pingados?) ficou a conversar com eles, a explicar-lhes que não podia alterar assim as regras de um momento para o outro, a pedir-lhes que o ajudassem a convencer os colegas a esperarem pelo início do ano seguinte, altura em que poderiam discutir a questão mais calmamente. A certa altura, começou a repetir-se, mas continuou a falar porque – sentiu um bocadinho de vergonha ao percebê-lo – não queria deixá-los e ficar sozinho. Por um lado, sentia-se agradecido àqueles duendes, os mais fiéis, os poucos que continuavam a confiar nele; por outro, sabia que ia pôr-se a pensar na injustiça que tudo aquilo constituía e isso só lhe faria mal.
A conversa decorria há mais de uma hora quando se ouviu o ruído da multidão a aproximar-se. O Pai Natal foi à janela e disse «Oh-oh!» (Quando dizia apenas duas vezes, era sinal de preocupação.) Lá fora havia mais de uma centena de duendes. Tinham cartazes, mas – o que era muito mais preocupante – também tinham forquilhas, paus e machados. Embora a maioria fosse do sexo masculino, viam-se igualmente várias mulheres. Aos berros, o duende barbudo exigiu que o Pai Natal fosse lá fora. O Pai Natal hesitou. Leu alguns dos cartazes: O Natal é para Todos, Pai Natal - Símbolo do Imperialismo, Brinquedos Iguais para Crianças Iguais, A Chaminé dos Ricos é Mais Larga. Abriu a porta e saiu. O duende barbudo, brandindo uma forquilha, avançou dois passos e declarou que os trabalhadores haviam decidido tomar as instalações. O Pai Natal que se afastasse ou sofreria as consequências.
O Pai Natal tentou um «Oh-oh-oh!» pausado e em voz de desafio que não lhe saiu bem. Depois acrescentou: «O que é isto? Estão a expulsar-me da minha própria empresa? Fui eu quem pôs isto tudo de pé.»
Era a resposta errada. O duende berrou: «Só conseguiu fazê-lo com a ajuda de centenas de trabalhadores a quem sempre pagou uma ninharia! E para manter um sistema injusto, que privilegia os mais ricos! Não o voltaremos a avisar: saia da frente ou afastá-lo-emos à força.»
As caras dos duendes que haviam vindo trabalhar surgiram nas janelas, o que só pareceu irritar mais o duende barbudo. «Traidores!», gritou. «Preferem ficar do lado do capital em vez de se juntarem aos vossos camaradas!» E logo a seguir, sem dar hipótese ao Pai Natal de voltar a falar: «Em frente! À carga!»
Correu para diante, um bocadinho aos tropeções porque os pés se lhe enterravam na neve, com a forquilha apontando para a frente. Durante um instante, foi o único a mover-se, mas depois todos os outros o seguiram, largando os cartazes e agitando as armas.
O Pai Natal constituía um alvo fácil. Tentou desviar-se, mas a forquilha atingiu-o no joelho esquerdo. Era uma táctica antiga dos duendes quando batalhavam seres de maiores dimensões: atingi-los nas pernas, de modo a fazê-los tombar, e depois acabar com eles. Quase resultou mais uma vez. O Pai Natal soltou um único «Oh!» abafado, rodopiou, quase caiu, mas, de forma surpreendentemente ágil para alguém tão velho e tão volumoso, conseguiu manter-se em pé e fugiu a coxear para o interior da fábrica.
O que se passou a seguir foi tão violento que mais vale não descermos a um nível de pormenor muito grande. O ataque à fábrica incluiu o arremesso de cocktails molotoff, feitos com óleo de foca, e, porque tudo isto era novidade para os duendes e alguns haviam percebido mal as instruções do duende barbudo, também de alguns pudins molotof. Com as instalações a arder, o Pai Natal e os duendes que tinham ido trabalhar foram obrigados a sair e os restantes lançaram-se a eles. O duende barbudo voltou a atacar o Pai Natal com a forquilha e desta vez espetou-lha na perna direita. O Pai Natal caiu e depois já não teve hipótese. A última coisa que disse foi um «Oh» muito baixinho e prolongado.
Os duendes olharam para as renas. Via-se que elas sentiam o perigo. Mantinham-se juntas, de cabeça erguida, orelhas espetadas, narinas a tremer, como que detectando o odor a sangue espalhado pela neve.
«O que lhes vamos fazer?» perguntou um dos duendes.
«Não podemos confiar nelas» disse o duende barbudo. E acrescentou: «Temos de as matar. De resto, a carne dá-nos jeito.»
Dirigiu-se para o redil. Os outros seguiram-no.
As renas pareciam atordoadas e nem tentaram voar. Limitaram-se a correr de um lado para o outro. À medida que iam sendo atingidas nas pernas por machados ou facas, caíam e eram rapidamente abatidas. Só depois de estarem todas mortas, a neve mais vermelha do que branca, é que os duendes se aperceberam de que Rodolfo não estava entre elas. Procuraram-no, mas em vão. Rodolfo, a rena preferida do Pai Natal, conseguira escapar.
Mais tarde, alguns duendes viriam a manifestar remorsos pela morte das renas, mas nenhum recusou a sua parte da carne.
A Mãe Natal julgava-se bondosa e, por isso, muito apreciada, mas tal não era inteiramente verdade. Bastantes duendes, especialmente do sexo feminino, achavam-na falsa, demasiado habituada aos benefícios de ser casada com o Pai Natal e nada preocupada com as dificuldades deles. Claro que apenas o diziam quando ela não estava presente, pelo que a Mãe Natal continuava a manter a ilusão. No dia da revolta, as coisas passaram-se tão depressa que ela nem chegou a perceber a verdade.
Fora às traseiras buscar um par de costelas de alce e preparava-se para as meter na frigideira previamente untada com gordura de foca quando o duende barbudo e outros dois duendes entraram sem bater à porta. A Mãe Natal achou isto muito estranho. Mas depois pensou que o Pai Natal devia ter sofrido um acidente e nem chegou a criticar o duende barbudo e os outros dois duendes pela falta de respeito. Perguntou apenas: «Aconteceu alguma coisa ao meu Nico?» (Só costumava chamar-lhe assim quando estavam sozinhos, mas naquele momento, com a preocupação, escapou-lhe.)
Ligeiramente surpreendido por ela não se ter apercebido de nada, o duende barbudo disse: «Em nome da Revolução, vimos prendê-la.»
A Mãe Natal franziu a testa. «Em nome da quê? Agora não tenho para brincadeiras, tenho que fazer o almoço.»
Voltou-se outra vez para o fogão e tratou de colocar as costeletas na frigideira. Como a gordura de alce já estava quente, começaram imediatamente a ouvir-se estalinhos.
O duende barbudo dissera aos outros que não iam magoar a Mãe Natal, apenas prendê-la num barracão até ser decidido o que fazer com ela. Dissera-o porque não queria suscitar discussões e porque lera ser esse o procedimento correcto a ter com familiares do líder deposto. Mas a verdade é que também lera que, mais tarde, eles deviam ser executados a tiro, o que o deixara com muitas dúvidas sobre a lógica do processo (infelizmente, o livro era vago neste ponto). Deixar a Mãe Natal viva significava correr o risco de que ela conseguisse manobrar os duendes que fossem entretanto perdendo o ímpeto revolucionário. E seguir o procedimento do livro criava ainda um problema logístico: por imposição da Coca-Cola, preocupada com a possibilidade de reportagens negativas, as armas de fogo verdadeiras estavam proibidas no Pólo Norte e até as de brinquedo eram fabricadas em quantidades cada vez menores.
Assim, quando a Mãe Natal lhe voltou as costas para tratar das costeletas, o duende barbudo viu uma oportunidade para acabar de imediato com o assunto. Deitou a mão ao atiçador da lenha que estava pousado ao lado do fogão (não há gás canalizado no Pólo Norte), saltou para cima de uma cadeira, e acertou com ele na cabeça da Mãe Natal. Ela ficou muito surpreendida, mas durante pouco tempo, porque ele lhe bateu mais duas vezes logo a seguir, fazendo-a cair no chão.
Então o duende barbudo saltou da cadeira e, perante o ar espantado – e até um bocadinho horrorizado - dos outros dois duendes, disse: «Pronto. Agora a Revolução está completa. Se alguém perguntar, ela tentou fugir.»
Cheirou o ar, onde já se notava o odor das costeletas a fritar, e pensou que a Mãe Natal podia ter muitos defeitos, entre os quais uma total indiferença pelas injustiças sociais, mas que sabia cozinhar, lá isso sabia.
O capítulo 4 (de 4) será publicado amanhã às 11 horas e 11 minutos.
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