Será humano, votar para avaliar a acção do governo cujo mandato termina. Usa-se até a expressão com naturalidade, sem reflectir muito sobre os inconvenientes do método: «A governação Sócrates foi avaliada em 2011», «O governo de Passos Coelho e Paulo Portas será avaliado no dia 4 de Outubro». Porém, esta forma de decidir o sentido de voto tem problemas: ignora os efeitos duradouros de políticas desastrosas e potencia populismos, seja através de um estilo de governação irresponsável por parte dos partidos ditos «do sistema», seja do aparecimento de forças anti-sistema, desprovidas de soluções.
O primeiro problema é fácil de compreender mas, para muita gente, difícil de aceitar. Quando um governo, através das suas políticas, condiciona fortemente a acção do seguinte (como foi manifestamente o caso na transição entre o governo de Sócrates e o de Passos Coelho), pretender que tudo o que este faz decorre de sua livre decisão só pode ser classificado como miopia. Qualquer governo que tivesse sucedido ao do PS teria hoje que explicar muitas medidas difíceis e, em alguns casos, a razão por que o país ainda se encontrava mergulhado em resgates.
O outro ponto é mais insidioso e também mais preocupante. Analisando os últimos 30 anos da democracia portuguesa (e poderia recuar-se mais), verifica-se que, de facto, os portugueses tenderam a votar para penalizar ou premiar o governo em funções e não para criar uma solução de futuro. Em 1985, penalizaram o PS pelo período de austeridade que a governação da AD tornara inevitável, escolhendo uma incógnita (Cavaco Silva e o PSD). Em 1987, premiaram o governo do PSD e voltaram a fazê-lo em 1991, após Cavaco - com ajuda de fundos comunitários - aplicar uma política de investimento em infra-estruturas e de reformulação do funcionalismo público, criando o que viria a ficar conhecido por «o monstro». Em 1995, fartos do estilo autoritário do PSD e de Cavaco que, para mais, haviam sido obrigados a aplicar medidas de contenção de despesa (algo que nem Guterres nem Sócrates teriam a coragem - e a hombridade - de fazer), elegeram o PS e António Guterres. Em 1999, saindo de um período de euforia que culminara na Expo 98, premiaram uma governação mãos-largas, não obstante existirem indícios de que nem tudo corria bem. Em 2001, os indícios haviam-se transformado no «pântano» de Guterres e os portugueses substituíram o governo. Mas não gostaram das medidas correctivas que o seguinte implementou (ou tentou implementar) nem das trapalhadas dos seis meses de governação Santana Lopes e, em 2005, deram a Sócrates e ao PS uma maioria absoluta. Em 2009 tornaram a ignorar indícios preocupantes (agora óbvios) e, numa reacção quase pavloviana, votaram em quem acabara de aplicar políticas populares (a descida do IVA, o aumento salarial dos funcionários públicos, a aposta desenfreada nas obras públicas). Perceberam as consequências em 2011, apeando o PS do governo. E deste modo trouxeram o país a 2015.
Em eleições, mais importante do que julgar o passado deveria ser avaliar as perspectivas para o futuro. O passado pode e deve servir como auxiliar mas torna-se perigoso que condicione por inteiro a orientação de voto. Em 2009 (como em 1999 e até em 1991), a avaliação do governo premiou actos irresponsáveis. Em 2015 (como em 1985), provavelmente penalizará uma governação que teve de aplicar medidas impopulares mas, mais falha, menos falha, foi globalmente correcta. Em 2009 (como em 1999), porque o governo fora simpático na distribuição de receitas (que não tinha), ignoraram-se os alertas sobre as dificuldades que se avizinhavam. Em 2015 (como, até certo ponto - os seis meses de Santana e a Troika impedem um paralelismo adequado -, em 2005), porque o governo foi muitas vezes antipático, corre-se o risco de eleger quem apresenta (novamente) riscos muito superiores para a sustentabilidade da economia nacional e, por conseguinte, para o bem-estar a prazo dos portugueses.
Mas votar com base em reacções epidérmicas aos acontecimentos do passado recente não aumenta apenas a probabilidade de que os governos sigam políticas irresponsáveis e recusem aplicar medidas antipáticas mas indispensáveis. Aumenta também o risco de, mais tarde ou mais cedo, surgirem partidos anti-sistema, com mensagens baseadas na exploração da insatisfação, os quais, se algum dia tivessem poder para governar, levariam o país a becos sem saída e, mesmo sem atingirem esse escalão, podem dificultar soluções governativas estáveis (*).
Avalie-se o passado, com certeza. O recente, o menos recente, os defeitos e as qualidades dos governos, a forma como geraram folgas ou constrangimentos herdados dos anteriores. Mas, acima de tudo, avaliem-se os riscos para o futuro e as melhores formas de evitar que se convertam em realidade. Porque fazer de outro modo é cair na armadilha mais preocupante para a democracia, visível em tantos países onde a retórica promete o céu mas o bem-estar geral nunca surge: a que a transforma num leilão entre vendedores de banha-da-cobra.
(*) Marinho e Pinto anda a proclamar que as culpas da situação nacional caem por acção nos partidos do «arco governativo» e por omissão nos da oposição. Apetece perguntar o que deveriam CDU e Bloco ter feito: um golpe de Estado? Concorde-se ou não com as políticas que defendem - e eu não concordo, de todo - fizeram oposição contínua ao longo dos anos, em todos os locais onde a poderiam fazer: no Parlamento, nos meios de comunicação, nas ruas. Exactamente o que quer Marinho dizer? E, já agora, que políticas defende?
pessoais
Amor e Morte em Pequenas Doses
blogues
O MacGuffin (Contra a Corrente)
blogues sobre livros
blogues sobre fotografia
blogues sobre música
blogues de repórteres
leituras
cinema
fotografia
música
jogos de vídeo
automóveis
desporto
gadgets