como sobreviver submerso.
O livro recebeu essas homenagens sem que ninguém previsse a tempestade que iria rebentar alguns meses mais tarde, quando o Senhor do Irão, o Íman Khomeiny, condenou Rushdie à morte por blasfémia […].
Isto aconteceu antes de o romance poder ser traduzido. Por toda a parte, fora do mundo anglo-saxónico, o escândalo precedeu, portanto, o livro. Em França a imprensa publicou imediatamente extractos do romance ainda inédito a fim de dar a conhecer as razões do veredicto. Comportamento absolutamente normal, mas mortal para um romance. Apresentando-a exclusivamente por meio das passagens incriminadas, transformou-se, desde o início, uma obra de arte em simples corpo de delito.
Os excertos não são apenas mortais para um romance. São sempre uma distorção e, com frequência, mortais para a mensagem completa. Os excertos de Os Versículos Satânicos só fazem sentido quando enquadrados no todo que é o livro. Mas excertos de acontecimentos políticos e sociais são também perigosos. Estamos no final de uma campanha eleitoral em que se discutiram exaustivamente indícios, intenções, posturas, frases avulsas. Houve um momento, no início deste mês – na altura dos debates televisivos – em que pareceu que se podia ir além disso. Ilusões. Como dirigentes desportivos e políticos autoritários sabem bem, a cacofonia tem vantagens. Arregimenta almas excitáveis e destroça tentativas de análise mais profunda. Vivemos no mundo dos soundbites. Decidimos em função deles e nem desejamos mais. Pessoas que tentam aprofundar assuntos são chatas ou presunçosas. Achamos suficiente ler as manchetes dos jornais gratuitos ou assistir à abertura dos noticiários televisivos. E os meios de comunicação (os jornais, as rádios, as televisões mas também as famosas agências) percebem-no e não nos dão mais do que isso. Convém-lhes assim, de resto: debates e investigações sérios exigem tempo, meios e jornalistas preparados. O livro do Kundera de onde a citação acima foi extraída chama-se Os Testamentos Traídos (*). Ao aceitar a cacofonia e a discussão do que é parcial e/ou acessório, a herança que traímos chama-se democracia.
(*) Edições Asa, tradução de Miguel Serras Pereira