como sobreviver submerso.
Quarta-feira, 22 de Julho de 2009
Entre a realidade e a ficção: Berlim, cidade do futuro

                        

Caminha-se por Berlim encontrando pedaços que não parecem pertencer-lhe. Pedaços no sentido literal (do muro, por exemplo) e em sentido figurado (memoriais, edifícios, artistas de rua fardados como agentes da Alemanha Oriental ou como soldados do exército soviético). O próprio Reichstag é um desses pedaços. A Berlim actual é a sua cúpula de vidro, metal e espelhos desenhada por Norman Foster, não as pedras centenárias que a suportam. De certa forma, Berlim é a antítese de Veneza. Veneza é um cenário mantido para consumo turístico. É tudo genuíno mas parece tudo uma encenação. Está parada no tempo, à espera de um futuro (talvez o momento em que as águas do Adriático resolvam finalmente engoli-la). Berlim não espera. Tudo é novo, mesmo as partes antigas (foram quase todas reconstruídas, como a bela praça de Gendarmenmarkt). Tudo parece vivo. Ou então incongruente. Vejam-se os memoriais. Entende-se por que são tantos. Entende-se mas não deixa de se estranhar, como se, eles sim, fizessem parte de uma encenação. O memorial dedicado ao povo judeu, o memorial dedicado às vítimas da guerra e da tirania, o memorial evocando os 96 membros do Reichstag mortos pelos nazis, as linhas no pavimento marcando a posição do muro… Será possível olhar-se para Checkpoint Charlie e sentir que aqueles painéis com fotografias e aquela cabina quase ridícula fazem sentido? Ou os pedaços do muro em Potsdamer Platz, rodeados por gigantescos edifícios de vidro? Na verdade, tudo isto faz apenas sentido como instalação de arte pós-modernista. É uma forma de Berlim dizer ao visitante: repara como integro e apresento o passado. E como ele foi estranho e incómodo.

 

Ou talvez não seja Berlim. Talvez sejamos nós. Talvez a culpa (termo que sinto dever evitar mas não consigo) seja nossa (do visitante), pela forma como assimilámos não só o horror da guerra (a segunda e a fria) mas também dezenas de livros e filmes e esperamos que tudo ainda seja visível no local. Comecemos pela realidade. Como é possível que Bebelplatz, enorme, serena, constantemente atravessada por berlinenses de bicicleta e por turistas com máquinas fotográficas, com um enorme cartaz da Mercedes de um dos lados, seja a mesma onde vimos os nazis queimaram os livros que consideravam subversivos e degenerados? Como pode este Reichstag ser o mesmo que se vê em escombros em fotos tiradas após a guerra? Como pôde esta porta de Brandemburgo ter estado bloqueada durante décadas por um muro de cimento? Uma das lições – frequentemente repetida mas sempre difícil de aceitar – é que coisas horrendas acontecem em locais aprazíveis. A outra é que a cidade e a sua história são demasiado poderosas para a imaginação do visitante. E depois há a ficção. Alec Leamas e George Smiley não têm lugar nesta Berlim, como o não tem Harry Palmer. Leonard Marnham não caminhou por estes passeios com um cadáver esquartejado dentro de uma mala. Hitler não passou os últimos dias num bunker sob estas ruas, proclamando, antes de casar com Eva Braun e de cometer suicídio, que, não tendo sido o povo alemão suficientemente forte para ganhar a guerra, merece o extermínio. Chega-se a Berlim prenhe com visões destas e a cidade não está lá para nos fazer a vontade. E as visões que escapam mais ou menos incólumes (talvez Franz Biberkopf tenha passado por Alexanderplatz, talvez Marlene, o anjo azul, tenha cantado num cabaret algures), fazem-no porque retratam figuras (ou acontecimentos) que estão para Berlim como o primo Basílio está para Lisboa ou os miúdos de Aniki Bobó para o Porto: pertencem à história “normal” (mesmo que ficcional) de qualquer cidade e, por isso, não exigem esforços (singelos, culpados, incoerentes) para nos mostrar que existiram e, mais importante, que não devem voltar a existir. Com estas poucas excepções, devem apagar-se as imagens construídas em torno de livros e de filmes. Mantenham-se as históricas mas, ainda assim, não se vá a Berlim à espera de uma cidade-museu. Esta é uma cidade nova, de pedra mas muito mais de metal e de vidro. Uma cidade que optou por continuar. Onde as tílias da Unter den Linden não geram sonhos políticos a escritoras em perda ideológica. Onde a nova cúpula do Reichstag é uma exaltação da arquitectura contemporânea e não um lamento pelo passado. Onde as inúmeras referências a esse passado são apenas balizas para o futuro. Porque ele tem um peso demasiado elevado para ser carregado às costas. O mesmo – e eu não sou alemão – que me forçou a ter que reprimir após cada frase deste post a vontade de realçar a malignidade do regime nazi ou a incongruência da divisão da cidade durante a guerra fria.

 

Fotos (todas tiradas no passado fim-de-semana):

1 - Pedaço do muro em Potsdamer Platz;

2 - Uma das fotos evocativas de Checkpoint Charlie existentes no sítio onde ficava;

3 - Um dos Trabants da Trabi Safari;

4 - Brincando na rua;

5 - Memorial dedicado às vítimas de guerra e de tirania;

6 - Memorial dedicado ao povo judeu.



publicado por José António Abreu às 20:57
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3 comentários:
De Nuno Castelo-Branco a 4 de Agosto de 2009 às 23:56
Maravilhoso post, do melhor que ultimamente tenho lido. Parabéns!


De José António Abreu a 5 de Agosto de 2009 às 21:52
Muito obrigado. Até me deixou meio sem jeito.


De Catarina a 22 de Março de 2010 às 09:32
Bom dia José!
Gostei muito do separador viagens. Este post sobre lisboa está epectacular e as imagens...fenomenais!
Gostava de falar um pouco contigo sobre uma possivel proposta. Podes entrar em contacto comigo por favor? catraina@minube.com!
Fico à espera!
Obrigada,

Catarina


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