como sobreviver submerso.
Domingo, 14 de Julho de 2013
Um apartamento em Oslo
Em Oslo, 95 coroas (cerca de 11 euros) dão direito a uma visita guiada (o único género disponível) ao apartamento onde Henrik Ibsen residiu durante os últimos quinze anos da sua vida, na companhia da mulher, Suzannah. O apartamento fica no primeiro andar de um edifício situado defronte do parque do Palácio Real, tem cerca de 300 metros quadrados (grande, até pelos padrões actuais) e apresenta uma mistura de elementos originais e de elementos construídos para parecerem originais. De forma grosseira, pode dizer-se que virando à direita na entrada se atinge a cozinha, a casa de banho, o quarto da empregada e os quartos de Ibsen e de Suzannah, que seguindo em frente se acede às várias salas, e que virando à esquerda se vai ter ao estúdio onde Ibsen escrevia. Ibsen morreu em 1906 e o apartamento foi aberto ao público no ano em que se comemorou a passagem de um século sobre a sua morte.

 

A difícil relação de Ibsen com os seus concidadãos (ou, talvez mais correctamente, a difícil relação destes com as suas peças), reflectidas em dificuldades financeiras variadas, levou-o a residir quase três décadas em Sorrento, na Itália, e em Dresden, na Alemanha. Contudo, em 1891, gozando de enorme prestígio a nível europeu, regressou quase como uma lenda viva, o que, se pensarmos no assunto, aproxima bastante a mentalidade dos noruegueses de então à dos portugueses de sempre. Escreveu as suas última quatro peças no apartamento de Oslo, que visitei num domingo, ao meio-dia, acompanhado pela guia, por uma chinesa com tendência para o mutismo, por uma belga pouco faladora e por uma alemã bastante silenciosa. A chuva intensa que começara a cair meia hora antes tinha provavelmente qualquer coisa a ver com o facto de a afluência ser tão reduzida.

 

Começa-se pelo estúdio, onde não se pode entrar porque o piso (uma espécie de linóleo) é o original. Ibsen tinha a secretária junto à janela; escrevia de frente para as árvores do parque e quase directamente de costas para um gigantesco quadro retratando August Strindberg, o seu rival sueco. Ibsen comprara a pintura não por apreciar Strindberg (que passara de seu admirador a crítico feroz) mas por desejar sentir-se permanentemente desafiado. Começava a escrever às nove da manhã e parava às onze e meia, ainda que deixando uma frase inacabada. Gostava, aliás, de se interromper num período de inspiração porque isso lhe permitia recomeçar igualmente inspirado. Saía de casa e percorria umas centenas de metros até um café onde tinha mesa reservada. Lia o jornal, observava as pessoas. Embora constituísse motivo de curiosidade para muita gente, ninguém o abordava. Em 1900, depois do primeiro de três derrames cerebrais, tornou-se-lhe difícil percorrer o trajecto até ao café. O rei ofereceu-lhe então uma chave para o parque do palácio (hoje público), que podia visitar sempre que desejava.

 

Ibsen autorizara a colocação de um piano no apartamento mas detestava música, considerando-a uma distracção. Apenas a nora tinha autorização para usar o piano de forma regular. Até mesmo o compositor Edvard Grieg, que criou a música para Peer Gynt, tê-lo-á utilizado somente uma vez. Também há uma pequena biblioteca no apartamento mas, pelo menos nesta fase da vida, Ibsen não gostava de ler. Defendia que o realismo que buscava era encontrado observando as pessoas, não através da leitura. Era Suzannah quem lia. À noite, lia em voz alta para ele ouvir.

 

Em quase todas as peças a partir de Casa de Boneca se percebe como Ibsen detestava a hipocrisia da vida familiar e social: aquelas mentiras, aqueles ajustes, aquelas ideias feitas que, no fundo, então como agora, são a base da convivência humana. As suas últimas palavras (assumindo que, ao estilo de O Homem que Matou Liberty Valance – e como é estranho meter um western neste texto – a lenda não ultrapassou a realidade) são por isso mesmo perfeitas. Agonizando na cama após mais um ataque, aparentemente sem noção do que se passava à sua volta, reagiu às informações da enfermeira para um visitante, segundo as quais ele estava a melhorar, abrindo os olhos e resmungando: «Pelo contrário.» Voltou a tombar inconsciente e morreu no dia seguinte, 23 de Maio de 1906.

 

Qualquer pessoa pode poupar as 95 coroas (mais umas quantas para chegar a e sobreviver em Oslo) e encontrar esta informação na Internet (por exemplo, aqui, a partir de agora). E, contudo, é diferente ouvi-la no local, olhando para o retrato de Strindberg, ou para os livros, ou para a banheira, que a guia jura ser a original, recuperada depois de ter andado a servir de bebedouro para animais numa quinta algures, onde Ibsen tomava dois banhos diários (era um dos seus grandes prazeres), ou para os quartos, incrivelmente espartanos quando comparados com as restantes divisões da casa. Subitamente, que apenas sejam autorizadas visitas guiadas faz todo o sentido. E que nesta apenas se encontrassem uma chinesa com tendência para o mutismo, uma belga pouco faladora, uma alemã bastante silenciosa e um português que também pouco disse pareceu tornar tudo ainda mais perfeito. Vozes e risos e passos destruiriam o ambiente. Bom, que a guia não debitasse a informação de forma demasiado ensaiada e fosse uma norueguesa loura, com pouco menos de trinta anos de idade, pouco mais de um metro e setenta de altura (Ibsen, norueguês de outros tempos, media um e sessenta e um), corpo esbelto e sorriso pertencente àquela traiçoeira categoria de sorrisos que deixam um homem sentindo-se imundo quando se atreve a questionar-lhes a genuinidade, também terá ajudado. Olhando para ela falando com entusiasmo, não pude deixar de pensar que Ibsen estava certo: observar as pessoas ao vivo é extremamente agradável. Pelo menos certas pessoas.

 

Mas não era na guia que eu pensava ao passar de novo perto do piano e abandonar o apartamento. Bailava-me no cérebro a ideia pouco original (para quê entrar por caminhos desconhecidos?) de que todos os génios são simultaneamente indivíduos normais, com vidas chatas e apartamentos banais (ainda que com vistas bonitas), e pessoas contraditórias, frequentemente auto-destrutivas. No fundo, que todos os génios têm uma apreciável dose de loucura. (A de Strindberg, acrescente-se en passant, era ainda maior do que a de Ibsen.) Infelizmente para mim, nem o sol que entretanto surgira em Oslo me abriu esperanças de o inverso também ser verdade. Mas outra coisa talvez seja. No apartamento encontra-se a cadeira onde Suzannah morreu em 1914. Suzannah detestava a ideia de morrer deitada. Quando sentiu o fim aproximar-se (na velhice e na doença, é sempre a morte que se aproxima, não os humanos que se aproximam dela), passava as noites sentada na cadeira. Uma manhã não acordou. Se os génios têm invariavelmente uma dose considerável de loucura, os seus parceiros necessitam pelo menos de uma boa pitada.

 

Fotos pescadas no Bing (é proibido fotografar no interior do apartamento).



publicado por José António Abreu às 21:16
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