como sobreviver submerso.
Sábado, 13 de Junho de 2009
Ainda a pirataria...

O post sobre o Partido Pirata sueco e a pirataria em geral motivou uma troca de comentários com alguns visitantes, muito em especial com um membro do Partido Pirata português (por enquanto um movimento, no futuro eventualmente um verdadeiro partido político). Como é costume nestas discussões, chega-se a um ponto em que a discussão parece bloqueada, porque a visão dos assuntos (e do mundo) é tão diferente que torna difícil estabelecer consensos. Isto é uma espécie de resumo do meu ponto de vista – obviamente, parcial.

 
1.
A questão dos direitos de autor é uma questão legal mas é, acima de tudo, uma questão ética. Quem cria algo merece ser compensado por cada utilizador e não apenas pelos primeiros (no limite, o primeiro). Cabe aos autores decidir se prescindem dos direitos. Dizem-nos que objectos que podem ser copiados (ou seja, onde o dono não perde o original) não devem estar sujeitos às mesmas regras que objectos materiais (onde o proprietário ficaria sem ele se eu lho tirasse). A semântica é sem dúvida uma ferramenta poderosa. Porque há-de um escultor (que cria um objectos não-copiáveis) ser diferente de um músico (que cria bens passíveis de cópia)? Dir-me-ão talvez que no futuro também poderá vir a ser possível copiar as esculturas e a situação passará a ser idêntica. Mas por que tem hoje o escultor mais direitos?
 
2.
O volume de lucro dos artistas é irrelevante e citá-lo (valha a verdade que ninguém, aqui, o fez mas é um argumento habitual) só pode ser demagogia ou inveja. Até porque, por cada banda (ou escritor, fotógrafo, artista plástico) milionária há milhares de pequenas bandas que não o são.
 
3.
O argumento de que as editoras (ou, em termos mais genéricos, os intermediários) ganham demasiado é também frequentemente falso e é sempre uma desculpa. A gravação e lançamento de uma obra de música clássica exige recursos enormes e o mercado é exíguo. As editoras de jazz certamente não ganham rios de dinheiro. As editoras de livros, especialmente as que apostam em obras de qualidade, também não. Mas eu sei – não é da responsabilidade dos “piratas” preocuparem-se com isso. Eles apenas querem que tudo esteja disponível quase sem custos para o consumidor. Suponho que estejam disponíveis para financiar gravações das sinfonias de Beethoven. Ou talvez achem que já existem versões suficientes no mercado.
 
4.
Muitos dos defeitos apontados ao sistema de patentes são reais (na minha opinião, especialmente porque o sistema dá frequentemente azo a registo abusivo de ideias menores e/ou que não têm verdadeira inovação). Ainda assim, propor a sua abolição sem sugerir alternativas nos vários campos em que o sistema dá garantias de retorno dos investimentos parece-me um tiro no escuro. A excepção, no que à apresentação de alternativas diz respeito, é a investigação farmacêutica, em que o Partido Pirata sueco propõe o financiamento público total, com o argumento de que não é assim tanto dinheiro (cerca de 15% da facturação das empresas farmacêuticas) e que isso permitiria reduzir o preço dos medicamentos, garantindo poupanças nas comparticipações estatais. Basicamente, as empresas passariam a ser fabricantes de genéricos desenvolvidos com fundos públicos. A ideia tem mérito suficiente para merecer ser discutida mas, numa época em que os Estados têm graves problemas orçamentais, é dúbio que se pudessem aplicar os fundos necessários, muito em especial em países que já hoje têm dificuldades em financiar a investigação pública - como Portugal. Uma mudança destas seria também uma oportunidade de ouro para empresas de outros blocos económicos ganharem um avanço quase irrecuperável. Como algumas ideias anti-globalização, esta é uma alteração que, para ter hipóteses de resultar, precisaria de um acordo global, na prática impossível de conseguir. Ou estarão à espera de uma revolução mundial simultânea? E ainda fica por explicar como se financiariam todas as outras áreas de investigação. Também com fundos públicos? Duvido que as empresas europeias se mantivessem durante muito tempo no topo da tecnologia, com péssimos resultados para a competitividade e o emprego na Europa. A eliminação das patentes também não é a única forma de fazer chegar medicamentos mais baratos a África, um dos argumentos mais utilizados pelos "piratas". Bens alimentares não têm patente e não é por isso que a fome está erradicada do continente africano. A questão é de vontade política.
 
5.
O Partido Pirata recusa apresentar um modelo de sociedade. O que vier a acontecer, aconteceu. Poderá ser uma espécie de anarquia? Poderá ser a nacionalização de toda a actividade económica com conteúdo criativo? Parece que os membros não sabem. Sabemos que o Estado terá que existir e que terá de ser forte, uma vez que irá financiar grande parte da actividade económica. Quando até bens físicos puderem ser copiados a preço razoável, suponho que terá de ser o Estado a fornecer o molde para tudo, uma vez que nenhuma empresa privada arriscará os fundos necessários para conceber um produto de que apenas fabricará, no limite, um exemplar. A verdade é que, para garantir a igualdade no acesso à cultura (objectivo descrito por um dos membros do partido português), todas as pessoas teriam que ter condições idênticas. Para o conseguir, e apesar de me dizerem que não é isso que se preconiza, tudo teria que ser comum – isto é, público. O corolário das ideias do Partido Pirata é uma sociedade em que o Estado financiaria e geriria tudo, fornecendo aos cidadãos rendimentos absolutamente iguais, de forma a garantir a igualdade, permitindo-lhes talvez depois que os aplicassem como entendessem, de forma a garantir a liberdade que o partido também afirma defender. Utopias deste tipo existem há muito mas as tentativas de implementação deram sempre péssimos resultados.
 
6.
O sistema actual tem falhas. Com certeza. Todos o sabemos. Nenhum modelo atingirá alguma vez a perfeição. Ainda assim, a evolução (tecnológica, de conhecimento, social, política, cultural) do último século não tem comparação no resto da História. Pretender destruí-lo sem uma alternativa muito bem pensada a todos os níveis parece-me imprudente e irresponsável.
 

Post Scriptum: os comentários continuam a ser bem-vindos mas, como é natural, visões diferentes tenderão sempre a gerar opiniões diferentes, pelo que apenas responderei àquilo que considerar não ter ainda deixado explícito (e eventualmente com algum atraso, uma vez que estou no interior centro do país, nem sempre junto do computador e, mesmo quando isso sucede, com um acesso móvel à net mais lento que um caracol preguiçoso).



publicado por José António Abreu às 13:12
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7 comentários:
De António Aveiro a 13 de Junho de 2009 às 18:19
Vou só responder rapidamente aos aspectos que penso não terem sido já discutidos anteriormente:

1. Está a assumir que os criadores de bens copiáveis têm os mesmos direitos que os criadores de bens não copiáveis e que pretendemos reduzir os direitos dos 1ºs, provocando uma diferença entre estes e os 2ºs. A nossa posição é a de que os criadores dos bens não copiáveis acumularam ao longo do tempo direitos em muito superiores aos dos bens não copiáveis representados no Copyright e apenas pretendemos equilibrar a balança tornando-os mais próximos aos direitos dos actuais criadores dos bens não copiáveis.

2. Concordo em absoluto e isto não é uma questão de valores monetários.

3. Discordando do ponto de que as editoras não têm lucros exagerados, remeto essa questão para o ponto 2. Não é importante. O problema não é se os lucros são grandes ou pequenos ou mesmo se são prejuízos. A questão é que não existe uma obrigação social de garantir que um dado modelo de negócio seja funcional e uma determinada indústria não deve ser protegida pelo estado para evitar desaparecer simplesmente porque não consegue lidar com a realidade. Muitas outras passaram por isso e desapareceram, o que tem de especial esta?
Mas este ponto já tinha sido abordado na discussão anterior por isso peço desculpa pela repetição. Foi apenas para esclarecer melhor.

Os restantes pontos acho que já foram todos tocados na discussão anterior e não lhes conseguiria responder tão brevemente e sem mais uma longa discussão com envolvimento das duas partes. Como tal optei por não falar mais neles.

Por fim tenho apenas de dizer que, ao contrário de muitas outras discussões, esta foi uma das melhores que já tive, tendo existido uma educação, respeito, seriedade e honestidade da sua parte maior do que aquela a que estou habituado nas discussões sobre este assunto. Por essa razão tenho de agradecer.

Apesar de não concordarmos, o facto de termos conseguido ultrapassar isto desta forma é um sinal muito positivo.


De Alguem a 13 de Junho de 2009 às 21:23
Sobre os Radio Head:
Eles ganharam mais dinheiro antes de lançar o album, do que tinham ganho no total, com o seu album anterior.
A música foi oferecida de borla durante 3 meses, e mesmo assim quando saiu atingiu o nº1 no EUA e UK. Deveria dizer "e ainda assim", ou "e graças a isso"?
No I-tunes, onde se tinha de pagar pelo download, chegou a nº1 numa semana, nos EUA.

Claro que a maior parte das pessoas não pagaram, porque a maior parte das pessoas que lá foram parar nem eram fans dos Radiohead, e só la foram por causa da publicidade gigantesca que a iniciativa gerou. Mas achas que essas vendas foram perdas??

Só mesmo alguém com uma visão muito fechada pode dizer que a inciativa não teve um grande sucesso...

PS: Tás a confundir o PP com o PCP. Não querias ir por ai, estás a faltar á verdade. Investiga melhor.


De Miguel Caetano a 14 de Junho de 2009 às 13:00
Caro JAA:

Não sou membro do PPP mas penso que todos os argumentos avançados por si neste e no outro partem de premissas totalmente equivocadas, senão mesmo desonestas. Concordo que os responsáveis pelo Partido - ou Fórum? - demonstraram alguma imaturidade na forma como criaram este "movimento". Mas isso não invalida que os princípios que eles defendem estejam totalmente correctos. Gostaria por isso de lhe recomendar a leitura de dois artigos e os comentários gerados por eles:
http://remixtures.com/2009/06/fazer-um-download-nao-significa-uma-venda-perdida/
http://remixtures.com/2009/06/exclusivo-entrevista-com-os-responsaveis-pelo-partido-pirata-portugues/




De José António Abreu a 14 de Junho de 2009 às 15:44
Caro Miguel Caetano:

Já lera o primeiro artigo a partir do link na página do Público. Admissão que, de alguma forma, os direitos dos autores têm que ser reconhecidos parece-me uma posição muito mais construtiva. Se o seriam através de uma taxa plana ou de outra forma, isso já merece discussão. Por norma, prefiro o princípio do utilizador-pagador (quem tem mais dinheiro tende a "utilizar" mais) mas a ideia não me choca. Obrigado pelo segundo mas não acrescenta grande coisa à discussão. Apenas registo que há mais quem associe a ideologia "pirata" com a anarquia e movimentos que procuram a estatização da sociedade.

"Todos", hã?


De Miguel Caetano a 14 de Junho de 2009 às 17:05
"Apenas registo que há mais quem associe a ideologia "pirata" com a anarquia e movimentos que procuram a estatização da sociedade."

Desculpe mas parece que não leu bem os comentários do segundo artigo. Não se trata de uma ideologia mas de um conjunto de causas ou princípios. Dizer o contrário é enveredar pela demagogia. Estamos do direito à livre partilha para fins não comerciais e estritamente privados, da restrição ou mesmo gradual eliminação dos monopólios intelectuais ao estritamente necessário com vista a estimular a criatividade e a inovação. Lá por determinadas percepções serem maioritárias não quer dizer que elas sejam necessariamente as mais correctas. Além disso, um grupo restrito de determinados leitores de um blog não constituem uma amostra científica da população portuguesa.

É salutar que hajam mais discussões sobre estes temas. Desde que não se enverede pela demagogia e pelo discurso fácil. Porque se tratam de questões demasiado sérias que têm a ver não só com a democratização do acesso à cultura e ao conhecimento como também da capacidade de facilitar o acesso a medicamentos e alimentos a preços acessíveis às populações mais carenciadas.


De António Aveiro a 14 de Junho de 2009 às 17:11
"Admissão que, de alguma forma, os direitos dos autores têm que ser reconhecidos parece-me uma posição muito mais construtiva."

Nunca ninguém disse o contrário.
Apenas que há direitos e direitos e que uns têm mesmo de desaparecer e outros de ser reduzidos mas não completamente ignorados.


De Francisco Arlindo Alves a 18 de Junho de 2009 às 03:47
Acho importante esta preocupação sobre a sustentabilidade econômica que o Jaa demonstrou. Entre os estudiosos que sugerem a limitação de direitos de autor como Lessig, Benkler e Bauwens existe uma vasta terreno de pesquisas mostrando que economias com direitos de autor e patentes mais rígidas tendem a estagnação (Existe literatura que propõe o inverso também).
Estes campo de pesquisas descrevem por exemplo a história do grande crescimento de paises como EUA no inicio do século XX construídos basicamente em inovações baseadas em inventos da Europa e criando novas invenções baseadas em outras, sem que se respeitasse as patentes da originais, também é notório a trajetória do grupo de rapazes roubou a invenção de Thomas Edison e formou Hollywood.
Ou o caso de Walt Disney que se apropriou de muita obras não registradas para criar seu personagens com seu talento, mas sem esforço apenas adaptando e trocando nomes de criações reconhecidamente populares, o que hoje seria impossível hoje. É uma história quebra de patentes para a criação de uma dinâmica de inovações, que ajudou o crescimento do Estados Unidos ( que estagnou com as leis mais rígidas), em seguida se repetindo no crescimento do Japão, e agora a China. E também encontrado exemplos deste fenômeno na cultura de eletrônica de fundo de quintal que deu origem ao Vale do Silício e na cultura hacker que moldou a internet.

Esta vertente é algumas vezes capitalista ultra-liberal e demonstra que grupos que inovaram recriando idéias ajudaram a economia, mas ao se consolidarem conseguem a aprovação de leis que reservam seus desenvolvimentos, criando oligopólios que prejudicam a economia.

Estes estudiosos partem da premissa que os direitos de autor são uma invenção muito recente, e sua consolidação é muito mais recente ainda esta consolidação produz estagnação da inovação (tecnológica, de conhecimento, social, política, cultural).


Um dos livros interessantes que falam do tema é este aqui:
http://revolucao.etc.br/archives/the-pirates-dilemma-o-dilema-do-pirata/

Não me parece que os partidos piratas proponham um desrespeito a leis de patentes ou direitos, mas a modificação da lei. Neste ponto, parecem até muito legalistas, mas por desconhecer os estatutos dos partidos Piratas, eu não saberia dizer se eles são suficientes embasados nestas propostas, ou se falham em explicitar seu pensamento.
Parafraseando sua fala, desconfio que Salinger (The Catcher in the Rye) não vivesse dos direitos de autor tanto tempo teria escrito outros livros tão maravilhosos quanto os que escreveu.


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