como sobreviver submerso.
Quinta-feira, 28 de Julho de 2011
De Oslo ao deserto americano ou a sensação de irrelevância nas sociedades saudáveis
Sim, há o medo do outro, especialmente quando ele é diferente, e a ameaça a valores «tradicionais», encarados como definidores de uma certa pureza, e haverá também distúrbios psiquiátricos que outras pessoas abordarão com mais propriedade do que eu, apesar de frequentemente a teoria explicar muito pouco. A mim, a Noruega fez-me voltar a Ballard. Numa sociedade totalmente saudável, a loucura é a única liberdade possível. Aparentemente, não existem sociedades mais saudáveis do que as nórdicas. Nível de vida invejável, civismo exemplar, protecções sociais generosas. Contudo, os nórdicos são conhecidos pela taxa de suicídios (ainda que, à la Liberty Valance, o mito possa ter-se sobreposto à realidade), e, com certa frequência, surgem da Escandinávia notícias de matanças aparentemente aleatórias ou, como no presente caso, na sequência de planos minuciosos. A violência, que em países menos saudáveis tende a surgir associada à luta pela sobrevivência, a conflitos étnicos ou religiosos com dezenas ou centenas de anos (transformados eles mesmos em tradição) ou à raiva pelas injustiças sociais, é nos países ocidentais (no sentido lato de «ocidentais») uma recusa da conformidade. É uma consequência da sensação de que não se é mais do que um elemento irrelevante numa gigantesca engrenagem funcionando de acordo com uma lógica cada vez mais asfixiante e impossível de alterar. Ballard avisava que os actos «inexplicáveis» de violência continuarão a aumentar. É a única liberdade possível. Enfim, talvez não seja bem a única: o suicídio, um acto de violência dirigido para dentro (note-se como a taxa tem aumentado nas últimas dezenas de anos), será outra. E depois há paliativos. Dos mais corriqueiros – o consumismo desenfreado, a modificação do corpo, os hobbies tornados obsessão, a pintura de frases de protesto em paredes – aos mais perigosos. Por exemplo, a adesão a posições extremistas, que oferecem um conjunto de regras totalmente diferente. Mas os extremistas são confrontados com o facto de nas sociedades «saudáveis», da Europa do Norte ou de qualquer outra zona geográfica, não ser suficiente adoptar certas posições e alardear o facto. Escrever na internet comentários xenófobos, racistas ou contra uma determinada religião gera apenas umas quantas respostas inflamadas. Organizar uns encontros ou umas marchas pacíficas é notícia para rodapé de noticiário. Não há mudança. Ninguém liga. Continua-se irrelevante. Resta subir a parada. Tornar as marchas violentas ou (solução especialmente adequada para solitários, em número cada vez mais elevado nas sociedades «saudáveis») chamar a atenção por meios mais bombásticos (no pun intended). E é então que a sociedade, atingida no seu âmago, na sua sanidade, presta finalmente atenção. Um tipo que mata setenta e tal pessoas já não é um «idiota» que coloca coisas na internet. É um «monstro», alguém que abala certezas, que obriga a pensar. As sociedades «saudáveis» são sociedades anestesiadas e só a morte – e já não basta a morte de uma ou duas pessoas, a menos que sejam famosas – é suficientemente forte para dissipar o efeito da anestesia. Durante uns dias.

 

Ligada a esta sensação de manietação e irrelevância, há pelo menos um outro factor que talvez possa ser abordado analisando a pergunta: por que são quase todos estas pessoas, estes assassinos, estes «monstros», do sexo masculino? (Como os suicidas, de resto.) Ballard outra vez: Nós não somos os seres racionais que pensamos ser. Somos selvagens. Os nossos sistemas nervosos centrais, os nossos cérebros, os nossos instintos, os nossos reflexos estão adaptados à vida de caçador solitário. Ou Cormac McCarthy. Por um motivo completamente diferente, Ana Cristina Leonardo levou-me a retirar Meridiano de Sangue da estante. Reli algumas das dissertações filosóficas que o juiz Holden faz aos seus companheiros, nos intervalos entre matanças e recolha de escalpes (sim, é ficção mas frequentemente aprende-se mais na boa ficção do que em herméticos manuais científicos) . Eis a natureza da guerra, cujo prémio é a um tempo o jogo e a autoridade e a justificação. Vista desta maneira, a guerra é a forma mais genuína de adivinhação. É pôr à prova a nossa vontade e a vontade de outrem no quadro daquela vontade mais vasta que, pelo facto de vincular todas as vontades individuais, é obrigada a escolher. A guerra é o jogo supremo porque representa, em última análise, o romper da unidade da existência. A guerra é deus.[…] Quando um homem cai morto num duelo, isso não demonstra que as suas ideias estavam erradas. O facto de ele se ter envolvido numa tal prova apenas atesta uma nova e mais vasta perspectiva. A vontade dos duelistas de renunciar a quaisquer novas discussões, reconhecendo o carácter trivial de todo e qualquer debate, e de apelar directamente às instâncias do absoluto histórico indica claramente a pouca importância de que se revestem as opiniões e a grande importância das divergências em torno dessas mesmas opiniões. Pois a discussão é efectivamente trivial, mas o mesmo não se pode dizer das vontades opostas que a discussão pôs em relevo.* A guerra enquanto jogo último. Enquanto necessidade masculina (ah, a testosterona) de conquista de poder e de testar limites – os do outro e os próprios. Antes, os homens caçavam e lutavam e, numa fase em que isso já não era bem visto, ainda entravam em duelos. Mas nas sociedades «saudáveis» (em parte, sinónimo de mais femininas) não se luta – não verdadeiramente, pelo menos. As lutas são mal vistas e as que existem têm de permanecer dentro dos limites entendidos como aceitáveis. Uma discussão num bar não pode acabar em pancadaria, da mesma forma que um desaguisado entre vizinhos não pode acabar em tiros ou em facadas. Nas sociedades «saudáveis» apenas as claques de futebol guerreiam (por vezes, sob falsos pretextos: de que forma a paixão a um clube, só por si, justificaria vandalizar áreas de serviço?). Ballard, aliás, defendia que se tornassem os desportos mais violentos e não menos. Até o trânsito – um escape em sociedades um pouco menos «saudáveis», mais dadas à troca de insultos, como a portuguesa – foi em muitos países civilizado à força de radares e pressão social. Esta luta contra os instintos tem consequências. Deixa latente uma sensação de cobardia, de insignificância, pronta a manifestar-se. Pronta a agarrar qualquer pretexto.

 

Ainda por cima, numa reacção natural mas, em parte, contraproducente, a resposta política e social a casos como o da Noruega é envidar esforços para aumentar o grau de sanidade. Lançar programas para ensinar tolerância. Perseguir ou regular sectores que não parecem tão «saudáveis» quanto deviam (heavy metal e jogos de vídeo, por exemplo). Proibir o acesso a armas de fogo. Criar mecanismos de vigilância mais intrusivos. Tudo em nome de uma lógica inatacável. Sensata. Civilizada. (E isto não é ironia; eu não me importava de viver na Noruega e é evidente que não devemos andar por aí aos tiros uns aos outros, até porque a minha pontaria deixa um bocado a desejar – e este último ponto, sim, é ironia.) Mas, afirmem Rousseaunianos e outras almas bem intencionadas o que afirmarem, o homem não é um ser «saudável». Ainda não. Talvez daqui a uns milhares de anos – ou umas dezenas, com manipulação genética (hurrah). Nos próximos tempos, ajudada pelo declínio económico, a pressão aumentará. Desconfio que em breve voltarei a Ballard.

 

* Edição Relógio d'Água, 2004. Tradução de Paulo Faria. Páginas 295 e 296.



publicado por José António Abreu às 23:14
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2 comentários:
De sinhã a 29 de Julho de 2011 às 19:30
que prazer é ler-te. :-)


De José António Abreu a 1 de Agosto de 2011 às 22:22
Obrigadíssimo. Só pode ser por causa do meu optimismo. ;-)


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