Viajo numa furgoneta velha, cor da ferrugem que tem. Uma Volkswagen Pão-de-Forma, não fosse o cliché e os níveis de poluição. Ando por muitos países, paro onde me apetece, meto conversa gestual com as pessoas e tiro fotografias com uma Leica M. No tejadilho da carrinha há uma antena discreta, no seu interior equipamento informático topo de gama e muitos livros – tantos que não preciso de cadeiras nem de cama, apenas de um colchão disposto sobre eles. Mantenho um blogue onde descrevo as viagens, mas minto acerca da minha localização. Quase sempre sob pseudónimo, publico fotografias fabulosas, que trazem o mundo siderado. No Tibete, sob o olhar atento de um militar chinês, um monge aponta para a furgoneta e, rindo-se, diz-me qualquer coisa que não percebo. Rio-me também, digo «Tashi delek» e ele parece satisfeito mas o militar continua desconfiado. Na Argentina, o condutor de uma carrinha de caixa aberta onde se pode ver um conjunto de boleadoras grita-me «Boludo!» quando me ultrapassa na estrada, e eu berro-lhe, pondo a cabeça de fora da janela, «Gracias!», o que o leva a erguer a mão esquerda no ar com o dedo médio espetado a apontar para cima. Encontro-o dez minutos mais tarde, num bar poeirento à beira da estrada, e acabamos a beber cerveja Quilmes e a discutir as hipóteses das selecções argentina e portuguesa no mundial de futebol (eu elogio Messi, ele elogia Ronaldo, eu estou pessimista quanto às chances de Portugal, ele garante que a Argentina será campeã). Passo da Indonésia para a Austrália num ferry que a internet me dissera não existir e fico dois dias parado no deserto a algumas centenas de quilómetros de Ayers Rock, lutando com aranhas e escorpiões que entram na carrinha pelos muitos buracos que ela tem, à espera que me tragam as peças de que necessito para poder continuar. No deserto do Saara fico trinta e duas vezes atascado nas dunas e sou libertado por um tuaregue que, após a quarta operação de socorro, me segue a cerca de cinquenta metros de distância no seu jipe Nissan, e se esforça por conter o sorriso de cada vez que pára ao meu lado, depois de eu ficar novamente preso na areia. Numa zona pouco habitada do noroeste do Irão sou cercado por uma patrulha militar que me acusa de trabalhar para os americanos, ou para os israelitas, ou para a Agência Internacional de Energia Atómica. Os computadores e a antena não ajudam mas consigo finalmente convencê-los de que os inspectores da Agência não andam em furgonetas ferrugentas e que o equipamento funciona tão mal que eu até pensava estar no Azerbeijão. Mesmo assim, depois de me autorizarem a seguir viagem, vejo-os a olhar para o céu com expressões apreensivas, como se esperassem a chegada de mísseis israelitas. Em pleno Inverno siberiano tento saber se, colocando correntes nos pneus da furgoneta, conseguirei atravessar o Estreito de Bering até ao Alaska. Todos me dizem que estou сумасшедший, ou pelo menos é isso que percebo, e, porque na realidade nunca estive tão são na minha vida mas quero mesmo visitar o Alaska, acabo por decidir lá chegar pelo outro lado. Numa estrada secundária portuguesa querem multar-me por não ter feito a inspecção da carrinha e por não trazer colete reflector, mas começo a falar uma mistura de cantonês e hebraico (as poucas palavras que sei em cada uma das línguas) e os elementos da GNR entreolham-se e resolvem mandar-me embora. Na Escócia, enquanto limpo a Leica sentado nas margens de um lago perto de Inverness, tiro inadvertidamente a primeira fotografia em décadas que parece mostrar Nessie com nitidez. Em todo o lado tentam vender-me sexo e droga e até armas mas recuso, excepto quando sinto que seria indelicado fazê-lo. Vivo de quê? É segredo. Se se soubesse, todos poderiam fazer o mesmo e as estradas ficariam sobrelotadas com carrinhas iguais à minha.
(Este post não inclui fotografias porque seria um desperdício utilizá-las apenas para ilustrar o texto. Usem a imaginação, acrescentem uma pitada de pôr-do-sol. E mantenham os olhos abertos porque elas vão surgindo por aí.)
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